Thursday, May 25, 2006

Bombom Vermelho


Três disparos certos. O seqüestrador estaria morto, mas era um inocente. Não podia ser! Nãããããããooooooooooooo...
Acordo assustado mais um dia mal dormido. Suando frio, logo me desfaço da fétida coberta e busco um cigarro na cômoda de madeira velha. Passo os olhos pelo despertador e vejo que iria ter de acordar em questão de minutos mesmo. Quatro e dez. Nem o sol faz menção de nascer a essa hora. E o fardo, que agora insiste em me perseguir em sonhos. No calendário da parede mofada, dia dezesseis de setembro de 2005. Há dez anos atirava em um inocente. Há dez anos.
Visto a cama com a coberta, coloco o surrado terno e empunho a arma. A mesma calibre 38 de sempre. Tomo um copo de café frio e saio do apartamento, trombando com a escória de drogados e as prostitutas vizinhas que ainda não largaram o expediente. Uma delas pisca, mas sabe que em vão. No carro, indo para delegacia, acendo mais um cigarro. Ligo o rádio, e a notícia do seqüestro do filho de rico e podre empresário deixa meu dia ainda pior.
Chego rápido na delegacia, não há vivalma na cidade a essa hora. Viro mais um copo de café, agora quente. Dá pra ver o pânico instaurado nesses investigadorezinhos de gabinete.
O garoto foi seqüestrado quando voltava para casa de um cinema. O pai, cuja fama de sujo o precede, recebera o seguinte bilhete:
SEU FILHO está em nosso PODER
SE QUISER O MENINO DE VOLTA,
SIGA AS INSTRUÇÕES:
Ponha 500 MIL DÓLARES
Numa MALA PRETA e deixe atrás
Da banca de JORNAL
DA ESTAÇÃO de trem às 10:50.
Pegue o TREM DAS 11:00
Se ficar alguém vigiando a mala
O menino MORRE!
Bilhete amador. Por ele que os idiotas tremeram? O maior caso dos últimos dez anos chega a delegacia e nem sequer serei relacionado. Ou não. Quando chego ao evitado gabinete, o meu, está em cima da mesa o dossiê com o caso.
Pego o carro e vou até a estação da Luz, arrancar informações do jornaleiro. A banca está fechada, e um degrau me serve de espera enquanto acendo outro cigarro. Por volta de meia hora, chega uma mulher gorda, já sentindo o peso da idade. Apesar do rosto apático e marcado, não deve ter mais de 40 anos. Chega comendo uma caixa de bombons com embalagem vermelha, e lambendo os dedos pergunta o que eu tinha na minha cabeça estúpida pra sentar no degrau da banca dela. Odeio esse tipo de abordagem, me irrita.
Esfregando meu distintivo em sua face, digo que vamos conversar.
Quando o relógio já gritava 9 horas e eu acabava de apagar meu enésimo cigarro, consegui poucas informações da ignorante dona de banca de jornal. Volto pra delegacia, onde o pai do menino esbraveja toda sua insatisfação com a polícia.
Gordo e careca, faz questão de nos dizer o quanto é importante na sociedade e as consequências de algo acontecer ao filho prodígio dele, orfão de mãe. De fato, pelo dossiê, o menino é um gênio. Melhores notas do internato europeu onde fica trancafiado a semana, só volta para casa no sábado. Presidente do grupo de estudos em latim da escola, fundador da atlética de tênis, é, condecorações é o que não faltam.
São dez e meia, estou plantado no ponto de taxi em frente a banca lendo o jornal e fumando mais um cigarro. Percorro os olhos pelas notícias tolas, sem me desviar da banca de jornal. As dez e cinqüenta, o pesado pai do garoto deixa a mala atrás da banca e pega o trem das onze horas. Papéis vermelhos não param de voar da banca. Nunca vi tanto fascínio por esses bombons vagabundos. Muitos deles imagino eu devem vir já esbranquiçados, velhos e podres. E ela os come como se deliciosos, como se... espera! Cadê a mala?
Um vulto preto corre com a mala na direção do treme-treme, um prédio antigo e acabado, tomado por vagabundos, viciados e prostitutas. Entra no prédio apressado, e não me vê chegar. Imagino que o menino deve estar ali. Subo as escadas sem iluminação, trombando em pessoas cujas vidas não devem significar nada. Chego a uma sala com feixes fracos de luz, que passam através das tábuas de madeira pregadas nas janelas. O vulto está de costas, rindo.
Aponto a arma pra ele já com ódio, e mando se virar. Ele, ainda rindo, diz que eu deveria ter prestado mais atenção ao bilhete. Se alguém o seguisse, o menino morreria. Rápido, coloca a mão no bolso e fazendo menção de sacar algo, é alvejado por três tiros no peito e cai. Na certa, o seqüestrador estaria morto.
Me aproximo dele, e com a voz no tom de ultimo suspiro, ele ri. Acendo a lanterna e vejo que é o menino, filho do empresário. O desgraçado sádico fingiu um seqüestro de propósito, queira atenção ou dinheiro. Dou mais um tiro, dessa vez em sua testa. Matei um inocente mais uma vez. Com cautela, engatilho o velho 38 e coloco o cano encostado no céu da minha boca. Esse fardo estava carregado demais. Aperto o gatilho, e, com os miolos espalhados por todo o lugar, caio ao lado do que o garoto sacaria do bolso. Um bombom vermelho.

2 comments:

Anonymous said...

Neste pequeno conto Pedro mostra todo o seu humor e seu olhar terno e ao mesmo tempo pessimista da sociedade. Com uma linguagem dura e seca, somos levado a um dia na vida de um homem entediado em um incomum e trágico dia de trabalho. As influências são notadas facilmente: a literatura policial de escritores como Raymond Chandler, Os HQs de Frank Miller (mais especificamente Sin City e a sua adaptação cinematográfica feita por Robert Rodriguez) e o cinema de Tarantino e dos independentes norte-americanos, com referências ao clássico "Taxi Driver", de Martin Scorsese.

Anonymous said...

Não consigo imaginar este conto em uotrãs cores senão preto e branco. Talvez, certos detalhes em vermelho do bombom e sangue. Sei que tudo isso soa a Sin City, mas poucos conseguem penetrar tão profundamente no imaginário de um personagem como o Pedro. Alguém que cria as coisas nãO PARA EXPÔ-LAS, MAS SIM PARA VIVÊ-LAS.

Beijão lindo