Wednesday, January 31, 2007

De grão em grão.


Inclinou o azeite suficiente para que se formasse um fino fio dourado e passeou com ele sobre os recém cozidos grãos-de-bico espanhóis. Ainda colocaria sal e vinagre, mas no momento dividia as atenções entre cortar em pequeninos cubos as cebolas e a água que fervia as gordas salsichas alemãs, que fatiaria em rodelas como fez às cebolinhas.

Vestiu a mesa de toalha xadrez vermelha e verde, dispôs a travessa das salsichas ao lado à dos grãos, na frente da jarra de água e atrás do pote de molho de mostarda preta. Pintou seu prato meticulosamente pra que ficasse bem colorido, e o observou durante longos segundos antes de comê-lo, intercalando as garfadas com goles d'água.

Repetiria o ritual todo dia ao entardecer, desde que completara 23 anos. As segundas, quem fazia as vezes da salsicha eram grossos bifes, e as terças costelas assadas. As quartas amassava os grãos com hortelã e os comia com pão, nas quintas, mesmo as de muito calor, cozinhava um grosso caldo de grãos-de-bico com bacon, e nas sextas servia-os acompanhados de bacalhau. Sábado apreciava os grãos com gengibre, e junto do cozido ainda iriam alguns alhos e molho shoyo.

Comia sempre sozinho. Morreu antes de completar o vigésimo quarto ano de vida.

Wednesday, January 24, 2007

Mais uma taça.


Tinha vontade de vinho. Trocaria seu sangue por ele se possível, devia valer ao menos um Bolla, e como uma garrafa seria pouco, trocava também seu terno e seus sapatos. Não existia razão concreta, a costura de seu mundo o deixava puto. Via erro em tudo, consumido então por um fracasso parcial que cegara qualquer outra aspiração. Coisas pequenas, leves toques, queimavam forte. Implorava piedosamente que se colocassem em seu lugar de verdade, cansou das situações invertidas serem palcos de dramas e o seu, comédias pastelonas. A hipocresia e as farpas saturaram, e não estava disposto a receber vis afagos. Enquanto não concluia onde encontrar seu vinho, fumou o nono cigarro.

Wednesday, January 17, 2007

Lamparinas de meu eu.

A foto do passado recente já não causa mais comoção. Passou apenas a ser foto, retém ali um outro eu onde o eu de hoje não caberia. A mesma foto hoje sairia igual, mas pouco provável que ficasse na cabeceira. Cairia na gaveta das coisas que passaram e mereceram um registro, e são elas tantas que seria apenas mais uma.

A foto da cabeceira de hoje saiu da mesma gaveta de ostracismo, mas saiu elegante. Galgou um caminho com classe por cima das outras, sabia que não merecia estar ali. Fez acender cada lamparina do meu céu e tocar cada sino de vento das janelas de meu eu. E é por isso que já não caberia no eu da outra foto ou em qualquer outro que fui.

Monday, January 15, 2007

Pela janela.

A garrafa rolou lentamente e, manchado pelas gotas de vinho que sempre arrumam um jeito de escorrer, o rótulo do Lambrusco dell´Emilia safra 1995 de certo sorria como as tantas garrafas espalhadas pelo chão.

Junto deles, as xícaras de porcelana chinesa ainda apreciavam o último gole de café, já melaço. O cinzeiro tossia os cigarros, e roupas mesclavam-se com velhos sapatos. Os discos caiam junto aos lençóis da cama vazia, e dois corpos desnudos se entrelaçavam com sonhos.

Com audácia, a chuva passou as rendas da cortina e fria tirou o sono dos rostos pálidos.

Foto retirada de http://www.flickr.com/photos/gutembberg/320177510/

Wednesday, January 03, 2007

Noite de verão.

O abraço selou o acordo. A partir dali, seriam cumplices em tudo. Frustrações seriam e aspirações eram agora assuntos corriqueiros como a falta de café ou o filme da televisão. Esse modo de pensar banal, de ser apenas por não ser nada, era testemunhado pelas maduras paredes brancas descascadas no rodapé e pela poeira de alguns cantos da casa. Foram construidos enormes arranha-céus e mesmo assim se pode ver a lua dentro do quarto. A paella de sentimentos era degustada ainda quente, para quem sabe as queimaduras ficassem na garganta. Mas perpetuar aquele dia não foi necessário quando descobriram que assim seriam todos os outros.