Thursday, November 15, 2007

Dourado.

A gaveta da geladeira era a pior parte da cozinha. Pelos sacos transparentes seria fácil identificar as hortaliças, mas figuravam por lá há tempos, e já estavam todas iguais num verde úmido com seus marrons. E eram 4 maços de cheiro verde em putrefação na geladeira, intocados. Os dois pés de repolho não se abriram antes de amolecer do lado dos caquis, os que mais contribuíam pro chorume orgânico do fundo da gaveta.

Mas, pior mesmo, era o cheiro do alecrim, o único fresco, no meio de tudo isso.

Foto do flickr/valerapena.

Friday, September 28, 2007

Animaizinhos de caramelo.


Foi bem estranho. A peça lhe parecia restrita , com piadas forçadas em caricaturas duras e secas. Mas podia-se, na opinião dele, explorar e descontruir contruindo em cima do espaço que permitia muito. Eles insistiram impor um palco italiano. Não que malveja, mas um paco italiano com grande interação talvez fosse mais adequado.
O decorrer da peça pareceu reconfortante. Algumas risadas forçadas perdidas por ainda algum fanfarrão que mal chegou a 8 dias de solidão. Mas já mostrava sinais de soltura no palco, estréia aflita. Grupo universitário, púlbico incentivador, mas nem um pouco crítico. Mesmo assim, galgou um belo trajeto ao instigante momento de "a peça acabou e como vai ser amanhã?". Isso ocorreu depois, mas o decorrer foi estranho.
Atrasos o fizeram chegar ao ponto exato do começo. Densa e literal, a peça, leitura de Garcia Marquez, era uma projeção de imagem rudimentar do livro. Até me divertia, quando ela apareceu, na cena de descoberta sexual por parte de um buendía, José Arcádio, exatamente. Era a cigana que o fez sair da família por duas décadas. Reconheci de imediato, mas com medo de demonstrar certa afinidade, tardei a comentar o fato.

Era como uma certeza surreal. Como se os heróis e crenças da infância legitimassem-se. Mas teria de esperé-la e surpreendê-la, que podia nem lembra-lo. Ficou sorumbático por tempos, a ver como o palco dobrava de tamanho. De repente, com breve anúncio que poderia facilmente passar dispercebido, viu que a garota lhe passaria ao lado, mas tomou-se pelo riso, pela sensação de delírio. Passou com bela máscara, mas assim que o viu a peça parou, ao menos à eles. Ela titubeou,voltou a pensar em Remédios a Bela (quinto personagem). E pouco, pouco mesmo passou até que ela congela-se aquele momento como fotografia num olhar de dois dias em dois segundos.

Depois ele a viu, e viu o quanto disfarçava-lhe o olhar, medo ou que. Conversaram depois, por iniciativa dele, mas a nada se levou. Enquanto ele se abria, extremamente patética ela justificava-se com negações baratas. Mas a peça havia de continuar outro dia.

Monday, September 24, 2007

Bobagem pouca.

Sobrava uma longa e completa volta dos ponteiros do relógio. A abstinência da nicotina era suprida com canecas de café, amargo e frio. Não gostava de nada muito doce.

Era simples o dilema. Se ela ligasse até a meia noite, teria enfim trancado os medos no cômodo ao lado, ou mesmo pra fora da janela. Estaria apta a sinceridade e a cada palavra empurraria o eixo do mundo dele um pouco mais pra cima. Dali veria as coisas mais simples, independente do que fossem. Desligaria o telefone depois de um bom tempo, sorrindo por saber o que fazer assim que acordasse.


Mas ela podia não ligar. E se assim, não teria bússola nem estrelas pra mais uma noite que seguiria perdido. Resolveu assim colocar um pouco de açúcar na enésima caneca de café. Viu-se amargo demais.

Friday, August 31, 2007

Acaso.

Desceu a rua afoito. Ao longe, mirava a pequena presília branca no cabelo negro. A multidão por si só não é nada, mas ela na multidão era muito. Corria por meio de mochilas e valises, aventais, ternos e casuais. As bolinhas pretas da blusa branca se aproximavam, mas não ousaria envolver o braço na cintura dela e dizer-lhe aquilo tudo que lhe engasgava.

Atravessou a rua ressabiado. Passou por ela do outro lado, e o azedo do cigarro ficou na bituca arremessada. Todos os conflitos foram apaziguados pelo denso gole d´agua. A garrafa guardou na mochila, e fitou rápido a menina que o fazia doce. Descia lenta, e ele podia até calcular o ponto que a encontraria na rua.


Virou as costas um momento. Organizou as idéias em tópicos fluentes e coesos, e tinha certeza de não titubear mais. Iria até ali e nenhuma mazela o faria distanciar de seu objetivo. Respirou fundo e se virou. O sorriso caiu atônito, e tudo escorreu no bueiro mais próximo. A multidão a engolira. Olhou pra cima cheio de sarcasmo antes de suspirar:


- Maldito Baudelaire.

Thursday, August 09, 2007

Conflitos fracionários.

Uma vez comi uma bala que concentrava 70% de hortelã. Tinha alergia, mas balinhas ou chicletes e chás passavam despretenciosos num vício desde os 15 anos. O sul do país era quente de suar colchão no curto verão, na tentativa de amenizar o frio que sempre os perseguia. Em menos de um minuto, meu rosto começou a inchar como se pegasse fogo e escorria até o peito visando o braço. Engolir o medo de agulha tão grande e tomar 30 mg de antiestaminico na veia recortou um pedaço da adolescência por correr o risco de receber um doce abraço sem o devido cuidado com os ossos.


Não sei o que comi ou que senti o cheiro que acordei as 4 da manhã quase rancando a pele de tanto coçar a palma das mãos, mas já tinha acontecido e um allegra 60 resolvido. Acordei depois de 20 horas depois totalmente empipocado, num estado entre o dormir e o acordado a ponto de distinguir a realidade tornar-se insignificante. Sozinho em casa não conseguia ficar de pé para passar pela porta e ir até o hospital. Tempo depois meu pai chegou e me levou quase dormindo pra lá e com dois allegras no organismo em 24 horas. Lá, a máquina que leu minha pressão errado e enquanto piscava amarelo seguida de bip sonoro. Acusava 207 por 196.
Me perguntaram se ainda possui as faculdades mentais e disse que sim, só que não conseguia me mover. Duas leituras depois e a máquina denunciou o breve proagnóstico como errado, e o estabilizou em 119 por 63. Apenas três minutos de conversa e 80 mg de antiestaminico deveriam derrubar as 2 horas que estava acordado, mas não durmi desde então. O corpo ainda coça como queimaduras pequenas e constantes que ao serem tocadas fazem feridas. A certeza de acordar amanhã e ter de buscar remédios é possível se conseguir manter a mente ocupada o bastante pra não pensar nisso. Pequenas e frequentes compressas de água fria feita com as mãos ajudam a relaxar enquanto esfriavam o corpo.

Thursday, July 19, 2007

Meados.

Enconstado na parede, assistia o desdém que o sorriso dela tinha pelo mundo. Passeava por entre as pessoas e, segura de si, lhe pediu um cigarro. Lamentou quieto antes de dizer que não fumava, e não se fez de rogada em deixar o vício bobo de lado. Uma sincera expressão dócil e os olhos deles acenderam as velhas lamparinas que sempre soube que dela eram.

As pessoas, como as cervejas e os cigarros em volta mal atingiam seus sentidos. Era agradável só perceê-la. Um tímido gole fez molhar-lhe a secura da boca sem fugir os olhos. Os cabelos já não mais coloridos dela sentiam o vento e sem pausa as coisas encaixavam-se. Experimentou tocar-lhe só com o pensamento, e logo deslizou as costas da mão nas faces enrubrecidas.


Não ousou desviar momento sequer seus olhos. Em pouco tempo, as mãos percorreram as costas e o abraço cauteloso e confortável fizeram-lhes acreditar que amanhã acordariam sorrindo.

Friday, July 13, 2007

Meu eu.


Sentado no banco verde de madeira e largos parafusos, arrepiava-o cada murmúrio da gélida brisa que atingia-lhe a nuca, passando pela fina fresta entre seu casaco marrom claro e seu cachecol bege. Em plena decadência, seus cigarros vagabundos não eram os mesmo de outrora, e seus sapatos haviam perdido o brilho de outros tempos.

Os maus presságios vieram sorrateiros. Primeiro, desfizeram sua família. O emprego e as relações afetivas foram-se gradativamente na fumaça de sua arrogãncia. As mãos trêmulas viviam na falsa tentativa de não se arrepender de atos passados. Amarelos, dedos que nunca se conformaram de não serem aceitos, mas sim postos de lado.

Folheva o livro que achou no banco. Maltrapilho, estava ali com suas páginas passadas pelo mesmo motivo que ele: a falta de opções. Naquelas páginas encontrou a cor da praça cinza que estava. Mesmo que não soubesse ler aquelas palavras, ali estavam todos os seus caminhos tortos e idéias solas. Ali, no alcance da mão, estava seu eu.

Saturday, July 07, 2007

Mazelas.

Quando o sol nasceu, as aspirações desse amanhecer logo se foram. O dia, que já durava algumas horas, correu rápido ao seu meio, o que configurou seu café como almoço. A língua sentia ainda o maturado do amargo gosto da madrugada, e cambaleava na luta entre o cansaço e seu objetivo.

Pairava em frente à porta do andar de cima de seu apartamento. Ensaiava tal discurso à dias em frente a móveis e espelhos, mas precisou de horas além cotidiano pra tomar coragem de dizer. O corredor se fazia temeroso, caminho difícil de percorrer com joelhos trêmulos. Vestia ainda a roupa de ontem, que era hoje e sempre. Só seria amanhã quando conseguisse dizer-lhe tudo que entupia ferrenhamente sua garganta.

Encostou na parede a poucos metros da campainha. Cambaleava a medida em que passava o batido texto em sua cabeça. Era simples sua construção, mas árduo de ser efetivado. Existem coisas que não se dizem assim, mas se o dizesse em outras circunstâncias seria jocosamente humilhado.

A campainha fazia seu mundo girar, e apoiou-se nos calcanhares. Sem cerimônias, se viu deitado no chão abraçado ao estomâgo, como se pudesse conter tudo que havia ingerido nas inúmeras e intermináveis horas que não dormiu. O cozido que o café fez das anfetaminas queimou a garganta antes de percorrer da camiseta ao tapete, preenchendo o chão que os separava. Os urros das convulsões chorosas a fizeram abrir a porta, e em pouco tempo a única coisa que conseguia dizer era suprimida pela sirene da ambulância:

- Me perdoa.

Tristeza.

Que encontre sem demora sua paz. Se depender de sua doce flauta, já a encontrou a muito tempo.

http://jc.uol.com.br/2007/07/06/not_143594.php

Thursday, July 05, 2007

Matutino.

Parecia tentar encontrar no passado as escolhas que o tornaram assim. Buscava quem sabe conforto nas palavras evasivas sobre o futuro que alcançaria. Privava-se de coisas que nunca buscou. Ou não se sentia preparado ou preferia se acomodar no que alcançava sem esforço.

Os carros passavam frequentes pela janela. Da vista da madrugada, via sonhos vazios vividos profundamente, e via sonhos distantes sempre perseguidos por mentes e corpos sofridos. Fumava com veemência, acendendo cigarro ao outro. O vento fazia dançar a fumaça como seus sonhos, e sabia que ela, como eles, iriam para algum lugar e precisava logo saber onde.


Bebeu o café amargo e pôs-se a dormir no sofá, com a televisão ligada. Quando acordasse, esqueceria dessas mazelas. Mas elas voltariam sorrateiramente durante o passear dos ponteiros, e o encontrariam no ciclo das madrugadas, sozinho com seus cigarros na janela.

Wednesday, June 27, 2007

Degustação.

Na cozinha, o pimentão era a forma de casar o aliche, sem pensar em nada senão em suas harmonias. O alho em finas fatias como lâminas inquieto percorria o azeite domado de ira enquanto o manjericão era triturado ciente de suas mazelas. Abraçaria o prato e elevaria seu sabor à ponto de introspecção, mesmo perdendo seus talos. O queijo e a noz moscada eram ralados e, ao mesmo tempo, os pimentões vermelhos se juntava ao alho na dança sobre o azeite sabendo que seria responsável pela carga de ousadia.

Tímido, em pouco tempo o aliche se desfez, amarronzando o molho que os tomates sem pele ao se desfazer propuseram junto ao todo. A água borbulhava seduzida com a idéia de cozer o macarrão gravata, que amaciou-se sem cerimônias. O prato foi servido à mesa com tinto forte aos convidados, que, sem pratos, serviram-se em cima de suas cabeças, mesmo na ausência de talheres. Enjerido as pressas, queimou-lhes as orelhas.

Esse texto faz parte dos que foram escritos em bloquinhos de papel com canetas bics. Tem algum tempo, mas amadureceu agora sem ter certeza disso.

Tuesday, June 26, 2007

Retalhos.


As coisas iam e vinham com tamanhas turbulência e intensidade que nada conseguia segurar. Maturavam enquanto flutuavam como borboletas pretas e amarelas nas quinas perto do teto, nas teias de aranha do lustre e nas frestas atrás dos móveis. Fugiam às suas mãos com destreza a ponto de se fazerem perto demais para que não perdesse o desejo por elas.


Tentou por vezes subir na estante para agarrá-los, e na queda pensava esmagar alguns, mas os via sorrirem enquanto corriam longe o banstante apenas para que presenciasse o deboche. Passou dias à fio na cama assistindo suas danças, e súbito jogou a colcha por cima deles. Para nunca mais perde-los, costurou um a um em sua pele.

Saturday, June 09, 2007

Desperdício.

O espaço vazio ainda fazia impor o respeito de quando freqüentava a cama dele.

Dividir a cama com quem não está lá é doloroso, e respeitar esse espaço nostálgico era deprimente, mas não o fazia de outra forma mesmo consciente de tal mazelas. Sentia certo prazer em chorar observando o nada entre as ondas dos lençóis e o colchão.

Na dor cotidiana tentava entender porque não. Com a nuca apoiada nas mãos e o lençol presente em metade de seu corpo, divagava sobre seus demônios. O cigarro fumava apenas depois de certa hora, mesma que ela costumava dormir. Não gostava que ele fumasse, e mesmo assim o fazia na janela todas as noites, enquanto bebia o quarto de vinho que insistia em sobrar do jantar.

Nesse dia arremessou a garrafa cheia pela janela e se perguntou porque não disse:
- Fica.

Tuesday, May 29, 2007

Cinza.


O abraço tomou ares de último trago de cigarro. Com vontade aspirou e absorveu o resto de calor que ela lhe proporcionava, segurou na garganta a ponto de doer e soprou pra longe, mesmo destino da bituca. Não que o abraço terminara para ela, era apenas ele que apreciava o gosto ruim que a fumaça deixa na boca.

As cores dela esvaíram-se abruptamente, mas imperceptíveis. Acendeu outro cigarro, esse já mais saboroso, e as palavras que ela lhe cantava eram pano de fundo para o barulho da chuva. As gotas corriam pelo vento como as lágrimas dela não tardariam. Respirou fundo e tossui, pra nunca mais tossir, aquele resto de saudade que grudara por ali.

Caminhou pra fora do toldo e sentiu a chuva apalpar seu rosto. Por mais que tenha apagado o cigarro, a chuva o conheceu ali.

Wednesday, May 02, 2007

Quem sabe.


As singelas batidas da sola do sapato marrom claro denunciavam que pouco importaria se haveria chuva ou neve depois do fraco sol. Suficiente apenas para agitar o cachecol verde e bege em seu pescoço, o vento soprava-lhe a calma de que tudo daria certo. O contraste entre a flor vermelha e a rua sempre verde enobrecia seu caminhar.
Assim que passou pelo canteiro de rosas brancas estremeceu. Ele a viu por ali lendo por seus óculos de aro fino, sentada bem na frente do canteiro, alguns poemas e contos. Depois de um tempo fumaria com doçura e leve desprezo o cigarro, e quem sabe o chapéu vermelho ao lado não fosse apenas para que se o sol aumentasse. Em pouco tempo levantaria, arrumaria o cabelo castanho e, com os livros na bolsa lateral e o chapéu na outra mão andaria leve a ponto de fazer o tempo parar para que pudesse ir embora.
Corria para lá todos os dias, assim que a manhã começava a tomar os espaços da lua. Ela teria de voltar ao menos uma vez.

Tuesday, April 17, 2007

Bon appétit.

Pensou em cada detalhe.

Os pratos foram colocados sob a toalha de linho branco, e as taças a frente, na direita. Os talheres imponentes repousavam sobre os quardanapos azuis e ao centro, junto do vinho tinto, um candelabro acendia a sala. Reunidos em volta, os amigos que o acompanhavam a anos, desde crianças. A espera era de ânsia plena, e era travado um duelo interior para contê-la.

Não estava bem, e todos sabiam. A cerimônia era o primeiro passo para sair de um eu sufocante. E todos ali sabiam o prazer que tinha em cozinhar, pensando assim o propuseram. Prometeu-lhes algo especial. Deixou a porta aberta, para que sentassem na mesa sem estragar a surpresa. Nem o cheiro escapava para seduzi-los.

Os vasos de flores vermelhas eram os mesmos de sempre, mas os quadros nas paredes eram novos, e não tardou a serem reparados. Eram feios e nada diziam, assim pensaram todos por ali, e clara era a assinatura do "chef" nelas. "Ainda bem que não cozinha como pinta" foi a linha dos sucessivos deboches, num tom exato para apenas os presentes gargalharem por entre as mãos.

A espera tornou-se angustiante. A garrafa de vinho vazia, o cinzeiro pela metade e as mãos impacientes passaram a ser destaques da mesa. Quando o banheiro se tornou inevitável para um deles, não teve coragem de olhar o corpo nu submerso na banheira mais do que tempo suficiente para ler o que estava escrito em seu peito.

Friday, March 16, 2007

Lentes.


Tinham sentado-se brevemente nos azulejos, lado a lado. Ignorando o velho e rude banco verde de madeira e ofertando-lhe em troca a cortez presença no centro da foto, aconchegaram-se cada um à sua primordial maneira. As mãos desceram habilmente ao nível dos pés, esticados em direção a rua, e não se fez de rogado antes de percorrer a maior parte da distância que a separava pela espera relutante da outra mão. Quem sabe não tivesse absorvido ainda tal intensidade, ou então, compreendido e visto nela uma cruel fraqueza fantasiosa.


As plantas dos canteiros da praça, coube de forma obcordada compor parte da moldura; o resto ficou à cargo do céu e os medianos feiches de sol que escoavam pelas folhas do um ipê amarelo. O vestido com pequenas violetas destoava um pouco da camisa com listras dele, mas ninguém havia notado. As mãos se entreolhavam indecisas pelas ações, afinal, não era muito tempo, tinha o que, menos de meses, mas se encaravam com propriedade e prestes a um arriscado passo.


A delicada música do realejo ao fundo dançava com os lábios, e bastaria que as mãos se encontrassema para começar a girar lenta a meticulosa engrenagem que os juntaria. O pacote caído de pipocas era a representação de que pouca coisa importava ali. Os olhares fitavam-se de velhos, e breve cairia por terra todas as precauções que os impediam de se apaixonar.


Há poucos metros deles, tragava com cautela o último trago do cigarro. A cinza caia grande ao mesmo tempo em que apertava o botão e sua cara sissuda começava a virar sorriso.

Monday, March 12, 2007

Crônica de um Crime.

Thomas, Priscila e Marcos Vinícius. Esses três amigos costumavam viajar juntos para a praia. O destino, geralmente, era o Guarujá, no litoral paulista. Apesar do pouco tempo que se conheciam – pouco mais de um ano – tinham já desenvolvido uma forte relação de cumplicidade. Era como se cada um deles já tivesse se tornando membro permanente da família um do outro. O curso de Jornalismo ainda nem chegara a sua primeira metade, mas já se mostrava um ambiente bastante rico em termos de relacionamentos afetivos. E prometia ainda mais, pois todo um conjunto de disciplinas, reportagens, trabalhos, festas e viagens estava à espera daquele pequeno grupo entusiasmado de jovens estudantes. Sem dúvida nenhuma, os laços que os uniam teriam se estreitado com o passar do tempo. Porém, um grave incidente encerraria, de forma brusca, aquela amizade.

Parte I - Estrada



No dia 29 de agosto de 2004, por volta das 16h30, após um final de semana com outros colegas da faculdade na praia do Guarujá, Thomas, Priscila e Marcos Vinicius retornavam à metrópole, descansados e muito relaxados, prontos para enfrentarem a semana exaustiva. Nada melhor para equilibrar os nervos do que um rápido e estimulante passeio nas bordas do continente. Na subida da serra, na Rodovia dos Imigrantes, porém, a história mudaria seu rumo. Tudo começou com um raspão no retrovisor de um outro carro no Gol prata de Thomas. Como se quisesse tirar alguma satisfação, mais uma vez, o outro veículo – um Tempra, insulfilmado – grudou no carro de Thomas até haver um choque sério, no qual o vidro traseiro direito estilhaçou-se. Priscila, que estava no banco traseiro, não entendeu bem o que estava acontecendo. Por sorte, não se feriu com os pedaços de vidros arremessados. O susto, infelizmente, era pouco para o pesadelo que estava por vir.

Mais à frente, Clécio Barbosa Ayres – motorista do Tempra, policial militar havia cinco anos – ultrapassou Thommy e forçou, com uma forte brecada diante dele, a parada do carro. No momento da ultrapassagem, quando eles saiam do túnel, Clécio colocou uma arma para fora do veículo e deu um tiro para o alto como forma de intimidação. Sem ter por onde escapar, Thomas viu-se obrigado a parar no acostamento. E parou. Dali a poucos instantes, já não poderia mais seguir em frente.

Clécio, de shorts e sem camiseta, desceu do carro e foi em direção ao Gol prata dos jovens. Com a arma em punho, aproximava-se ameaçadoramente. Thomas já suplicava: "Calma! Calma! Calma!". Soltando o volante, as mãos espalmadas acompanhavam, fielmente, suas palavras. Não percebendo nenhum sinal amistoso por parte de Clécio, Thomas tentou engatar à ré, mas não conseguiu. Colocou, então, a primeira marcha. Olhou para trás para se assegurar de que não vinha nenhum carro . Antes de poder acelerar e escapar daquele desconhecido armado com uma pistola .40, a viagem acabara para Thomas . Um tiro certeiro atingiu a nuca de Thomas Schwarzenberg, 20 anos de idade, estudante de Jornalismo do Mackenzie que, naquele mesmo dia, um pouco mais cedo, tinha oferecido seus bilhetes de ônibus aos amigos, pois, segundo ele, não precisaria mais usá-los.

O carro de Thomas saiu, então, desgovernado até bater no carro de Clécio, parado um pouco mais à frente e que era ocupado, além do motorista, por um amigo, Daniel, e duas acompanhantes, Simone e Michelle. O policial pediu que Priscila e Marcos Vinícius descessem do Gol e encostassem na mureta. Enquanto isso, o próprio Clécio ligava para a polícia, enquanto Daniel foi até o carro de Thomas e urinou sobre o pneu.
Pouco tempo depois, a polícia chegou, seguida pelo Resgate. Clécio foi preso em flagrante. No hospital, aconteceu o primeiro encontro entre os amigos de Thomas e seus familiares. Neste momento, a mãe da vítima, Cynthia Marlene Schwarzenberg, abraçou fortemente Priscila como se buscasse, ali, os últimos momentos de vida de seu filho.

Quando já estavam na delegacia, todos no mesmo salão, Clécio andava de um lado ao outro, sem algemas, fazendo ligações de celular com uma tranqüilidade para aquela situação. A impressão que se tinha é que, mais uma vez, Clécio contava com a impunidade, afinal de contas, estava com a Carteira de Habilitação vencida e com o licenciamento do carro irregular e parecia não se preocupar com tais inconvenientes. Somente após a chegada da Imprensa, levaram-no para uma sala isolada. O resto da noite é previsível. Junto com ligações para familiares e depoimentos à polícia, muita dor e revolta, choque e incredulidade. A única coisa que se sabia, naquele momento, é que as marcas daquela tragédia demorariam muito para cicatrizar e que, por mais pesadas que fossem para carregar, elas seriam indeléveis.
Esse é a primeira de três partes que compõe a matéria especial Crônicas de um crime, elaborada originalmente para integrar o jornal interno Diretriz da Universidade Mackenzie.

Tuesday, March 06, 2007

No céu.


Correm rápidas, sem destino certo. Grandes que são, parecem fugir do sol. Amarelas, negras, brancas, vermelhas. Desmancham ao vento como painas. Se fazem amores, saudades, lembranças tolas de colombinas, pierrots, balões, ursos ou o que se quiser ver. Percorre o céu seu carnaval. Ora zangas, ora serenas e chorosas. Pode estar escuro, que mesmo assim estão lá, prontas pra emoldurar a lua ou esconder tímidas estrelas. Veja quem quiser seu desfile, mas veja rápido, pois amanhã quando amanhecer podem não estar mais lá.


Texto de dezembro de 2005.

Wednesday, February 21, 2007

De repente, moça flor.

Passava as pontas dos dedos em cada grade cinza dos prédios, no compasso do andar. Assistia ao suicídio altruísta das flores, que se jogam da árvore e acabam como presente para cabelo de meninas, e lembrei dela. Lembrei feliz dela feliz, lembrei do beijo feliz que sempre me dá com a ponta dos lábios e de como é triste quando corre pra casa. De cócoras apreciava as gotas d'agua que polvilhavam as pétalas da flor branca e amarela, e resolvi ali que seria pro cabelo da minha menina. A flor se fez alegre e sorriu pelo seu destino.

Wednesday, February 14, 2007

Cúmplice.


Assistiu do sofá o iminente desfecho. Queria dizer lhe dizer que se ele fosse embora morreria, mas faltou substância pra passar no nó da glote. Enquanto ele selecionava minuciosamente os cds que levaria, preferia olhar sem estar ali, estava presa em lembranças. Deixou os Chicos e os Piazzollas que ela tanto gostava, levou os Tom Zés e os Los Hermanos e se esqueceu de Miles Davis e Edith Piaf. Ela fez questão de lembrá-lo de Egberto Gismonti, a dança daquelas cabeças fazia queimar os nervos e dilacerar os músculos sem ele.

Pegou seus quadros e deixou os vinhos, compraría-os em qualquer lugar de qualquer dia. Se portava como em uma grande liquidação, onde o custo das coisas que selecionava eram pedacinhos do seu eu.

O adeus foi breve e triste, mas caloroso, como em qualquer outra vez em que saiu de casa pra voltar. O espetáculo trágico de única apresentação deixou o autor/ator satisfeito e, no mesmo momento que descia as escadas, a platéia sucumbira a derreter em prantos até ser absorvida pelo vermelho do sofá.

Wednesday, January 31, 2007

De grão em grão.


Inclinou o azeite suficiente para que se formasse um fino fio dourado e passeou com ele sobre os recém cozidos grãos-de-bico espanhóis. Ainda colocaria sal e vinagre, mas no momento dividia as atenções entre cortar em pequeninos cubos as cebolas e a água que fervia as gordas salsichas alemãs, que fatiaria em rodelas como fez às cebolinhas.

Vestiu a mesa de toalha xadrez vermelha e verde, dispôs a travessa das salsichas ao lado à dos grãos, na frente da jarra de água e atrás do pote de molho de mostarda preta. Pintou seu prato meticulosamente pra que ficasse bem colorido, e o observou durante longos segundos antes de comê-lo, intercalando as garfadas com goles d'água.

Repetiria o ritual todo dia ao entardecer, desde que completara 23 anos. As segundas, quem fazia as vezes da salsicha eram grossos bifes, e as terças costelas assadas. As quartas amassava os grãos com hortelã e os comia com pão, nas quintas, mesmo as de muito calor, cozinhava um grosso caldo de grãos-de-bico com bacon, e nas sextas servia-os acompanhados de bacalhau. Sábado apreciava os grãos com gengibre, e junto do cozido ainda iriam alguns alhos e molho shoyo.

Comia sempre sozinho. Morreu antes de completar o vigésimo quarto ano de vida.

Wednesday, January 24, 2007

Mais uma taça.


Tinha vontade de vinho. Trocaria seu sangue por ele se possível, devia valer ao menos um Bolla, e como uma garrafa seria pouco, trocava também seu terno e seus sapatos. Não existia razão concreta, a costura de seu mundo o deixava puto. Via erro em tudo, consumido então por um fracasso parcial que cegara qualquer outra aspiração. Coisas pequenas, leves toques, queimavam forte. Implorava piedosamente que se colocassem em seu lugar de verdade, cansou das situações invertidas serem palcos de dramas e o seu, comédias pastelonas. A hipocresia e as farpas saturaram, e não estava disposto a receber vis afagos. Enquanto não concluia onde encontrar seu vinho, fumou o nono cigarro.

Wednesday, January 17, 2007

Lamparinas de meu eu.

A foto do passado recente já não causa mais comoção. Passou apenas a ser foto, retém ali um outro eu onde o eu de hoje não caberia. A mesma foto hoje sairia igual, mas pouco provável que ficasse na cabeceira. Cairia na gaveta das coisas que passaram e mereceram um registro, e são elas tantas que seria apenas mais uma.

A foto da cabeceira de hoje saiu da mesma gaveta de ostracismo, mas saiu elegante. Galgou um caminho com classe por cima das outras, sabia que não merecia estar ali. Fez acender cada lamparina do meu céu e tocar cada sino de vento das janelas de meu eu. E é por isso que já não caberia no eu da outra foto ou em qualquer outro que fui.

Monday, January 15, 2007

Pela janela.

A garrafa rolou lentamente e, manchado pelas gotas de vinho que sempre arrumam um jeito de escorrer, o rótulo do Lambrusco dell´Emilia safra 1995 de certo sorria como as tantas garrafas espalhadas pelo chão.

Junto deles, as xícaras de porcelana chinesa ainda apreciavam o último gole de café, já melaço. O cinzeiro tossia os cigarros, e roupas mesclavam-se com velhos sapatos. Os discos caiam junto aos lençóis da cama vazia, e dois corpos desnudos se entrelaçavam com sonhos.

Com audácia, a chuva passou as rendas da cortina e fria tirou o sono dos rostos pálidos.

Foto retirada de http://www.flickr.com/photos/gutembberg/320177510/

Wednesday, January 03, 2007

Noite de verão.

O abraço selou o acordo. A partir dali, seriam cumplices em tudo. Frustrações seriam e aspirações eram agora assuntos corriqueiros como a falta de café ou o filme da televisão. Esse modo de pensar banal, de ser apenas por não ser nada, era testemunhado pelas maduras paredes brancas descascadas no rodapé e pela poeira de alguns cantos da casa. Foram construidos enormes arranha-céus e mesmo assim se pode ver a lua dentro do quarto. A paella de sentimentos era degustada ainda quente, para quem sabe as queimaduras ficassem na garganta. Mas perpetuar aquele dia não foi necessário quando descobriram que assim seriam todos os outros.