Monday, May 11, 2009

Roteiro do não ser (parte 3. final)


Antes de ir ao teatro, fui assistir uma peça. Num teatro próximo, os ingressos estavam esgotados. Vim pra cá só dar uma passada, ao ponto que a peça fica mais séria.

Você enfia a cabeça pra fora das cortinas vermelhas e diz ao público:
- Venham todos ver a maior marionete do mundo.

As cortinas se abrem.

Você está maquiada e vestida de colombina. No centro do palco está Eu, vestido de Pierrot. De camiseta regada e mãos amarradas, tem no seu ventre as tripas expostas.

Eu diz:
- Chamou seu público?

Você:
- Veja!
E aponta para o teatro vazio antes de continuar.
- Estão todos a nos olhar.

Eu:
- Que palhaçada.

Você gargalha.
- Estamos vestido a caráter pra ocasião!

Eu solta as mãos e desmancha a maquiagem.
- Para com isso!

Você:
- Pensei que gostasse de me ver feliz.

Eu:
- Gosto Não a custa de minhas entranhas.

Você:
- Nunca gostou de me fazer feliz com elas, não é verdade?
Eu:
- O que quer de mim? Anda a me colorir, a me fazer gracejo ao mesmo tempo que nega um nós.

Nós retruca:
- Estou aqui.

Eu:
-Vá a merda, narrador irreal. Não existe nós. Suma de vez porra!

Você:
- Sempre odiei suas grosserias.

Eu:
- Mas adora fazer primavera das minhas entranhas! O que quer perto de mim? Me vejo ai dentro, querendo tomar conta de você. E me amordaças numa cadeira!

Você:
- Você fala demais!

Eu:
- Ande, diga! O que quer? Não sei o que vejo. Se tenho as chaves dos teus baús nas minhas mãos ou se me mostra pra dizer que elas não servem mais.

Você:
- É complicado.

Eu:
- Ora, vá a merda.

Você fica séria. Vai pra frente do espelho e começa a se arrumar.

Eu, tirando o resto de maquiagem do rosto, diz:
- Porque está se arrumando? Vai aonde?

Você:
- Tenho um encontro. É um bom rapaz. Advogado. Sério. Não tem essa sua bipolaridade.

Eu:
- Você está apaixonada por ele?

Você:
- Ainda não.

Eu:
-Ainda?

Você:
- É um rapaz interessante. Vamos a uma festa a fantasia. Ele é seu Arlequim de hoje.

Eu:
- Porque não me deixa sair dai de dentro e o coloca no meu lugar?

Você:
- Gosto de levá-lo pra passear. Você nunca sai dessa cabeça...

Minha tosse encerra a cena. Bebo um pouco de café.

Levanto da cadeira e vejo o teatro, cheio de Eus a ecoar "Você nunca sai dessa cabeça..."

Alguns Eus confabulam. Outros gargalham e saem pra beber uma cerveja. Em pouco tempo todos vão embora.

Arrumo o cartaz do show do La Carne no Teatro. É semana que vem. A

Acendo outro cigarro antes de fechar as portas. Acaba de amanhacer por entre prédios.

Saturday, May 09, 2009

Roteiro do não ser (parte 2)

Abreem-se as cortinas:

Eu e Você estão nus na dormindo na cama abraçados. Você levanta e se veste lentamente. Por fim, coloca o vinil de Chico Buarque pra tocar e sai sem que Eu perceba.

Da platéia, uma lágrima corre em meu rosto.

O acaso entra pela janela e acorda Eu com a chuva. Eu se levanta, fecha a janela e senta na cama aturdido.

Nós:
- Cada vez que nos perdemos foi sincera e necessária. A menor das fissuras que causamos a nós deixou escapar as nossas consciências o quanto nos precisamos.

Eu bebe o conhaque e acende um cigarro. A cena escurece lentamente enquanto o vinil ainda toca abafado pelo barulho da chuva.

A luz volta com Você ensopada de chuva.
Diz:
- Eu voltei pra ti.

Eu, bêbado no sofá, retruca:
- Mentira. Você volta pra me assombrar, não és real. Já entrou por essa porta, pela janela e pelo teto mais de cem vezes num só dia.

Você:
- O que estás dizendo se bêbado tolo? Voltei pra ti porque te amo. Porque voltei a crer em nós. Vem cá pra mim.

Eu:
- Se afasta mentirosa.

Enfurecido, pega a arma na gaveta e atira em Você, que cai no meio da cena. Eu senta em choque ao lado do corpo. O barulho de chuva aumenta. E a cena torna a escurecer.

A luz volta.

Eu e Você, cheia de sangue, estão abraçados no sofá. Eu está confuso.
- Você, não me deixará nunca não é mesmo?


Você responde risonha:
- Você é quem sabe disso. Estou aqui, em cada vão de seus pensamentos, em todo vazio de sua cabeça porque você a esvazia para mim. Você não me deixa ir.

- Já te joguei pra fora de minha cabeça pelas orelhas, - responde Eu - Ja te dei cordas pra se enforcar. E o que você fez? Redes e rendas por toda a minha mente!

Você suspira. E diz:
- Que mal há em deixar tua cabeça mais bonita?

Eu grita.
- Inferno!

E desata em tristeza.
Você levanta, coloca o vinil de Astor Piazzolla, Adios Nonino. Volta ao sofá e toma Eu em seus braços a consolá-lo.

Assisto do Teatro vazio. Olho para as outras cadeiras enquanto as cortinas se fecham.

Friday, May 08, 2009

Roteiro do não ser.

Não é um conto. Não é um cheque mate, não é um peão sendo comido pela rainha nem o rei derrubando uma torre.

É uma peça de teatro.

E estou sozinho assistindo da platéia.

Cortinas vermelhas fechadas. Entra a voz de Nós, o narrador:
- Eu te dizia por muito tempo que só existiria nós dois quandoexistisse um eu e um você. E agora que eles existem, assisto aosensaios do que poderiamos ou podemos ser juntos sozinho no teatro.

Abrem as cortinas. Eu acendo um cigarro e tomo mais café.Sou diretor de arte, que colori cenários, seleciona as mesas, o menu eas garrafas de vinhos, os lençóis. Sou o roteirista e sou o diretor.

Quem senta ali no palco contigo não sou eu, mas um eu que junto comvocê faz um nós.

Estamos na mesa de jantar.

Eu no palco digo:

- Não tentar denovo me parece um grande erro atemporal. É a históriado você só me fez mudar, mas depois mudou de mim. E vale para aperspectiva de ambos. Não há julgamento de momentos ou conversas com oacaso de “seria esse o tempo pra isso acontecer?". É um estado deespírito, que não impede a vida plena e não trás a morte.

Você diz:

- É complicado.

Nós diz:

- E não pensaram mais nisso juntos. Os pensamentos percorrem ascabeças e morrem em suas próprias paredes, que nunca dividiram.

Comemos. Nos olhamos e sorrimos.

Sobe a música e o roteiro empaca. Não existem tantas falas possiveis,salvo alguns clichês de convivência.

Troca o cenário.Um dia numa praça do relógio ao sol é o que acontece. Apenas diversões. Nos namoramos.

Nós:

- Nós namoramos por muito tempo, mas poucos nos namoramos como fizemospor lá. Não havia calma em nós.

O cenário corre. Volta a sala e estamos vendo um filme.

Alguém bate na porta. É o acaso.

Ele diz:

- Não ter quem mais se ama é estar sentando na estação de trem epensar no caminho que se fez pra chegar até ela, em cada estaçãopercorrida, e saber que o trem já passou. Cada trem novo enche aplataforma, expectativas, desastres, amores e rancores, mas não é omesmo trem.

Você sai de cena.

A vida de solteiro se enche de amores, cigarros e orgias. Existem festas e um grande fluxo de pessoas. Existem trabalhos. Existemcrianças e troca recíproca de sentimentos.
E depois um vazio.

Volta o acaso:

- Não há espaço no roteiro para a matemática do improvavél. Ela sóacontece quando catalizada. Quando se deixa transparecer informações.

Levanto do sofá e digo:

- Quero que saibas: te entendi por esse tempo muito mais do que imagina. Não entro nas mazelas que diz que sabe. Seria sadomasoquismo. Acredito num nós que não sei se é real. Mas ele anda me cercando, me tocando. Elucida que pode existir nessa inexistência.

Um barulho grande. Um grito agudo.

Eu digo:
- Limpar minha consciência de que? Não há ferida que não sejacicatrizada. Ancorar no passado não se deixa viver o presente e faztemer-se o futuro. Se o caminho que percorremos nos trás até aqui, semmedo ou vergonha do que se passou, é com isso que temos de trabalhar.Não há perfeição sem que se parte imperfeição. E disso contruo todaminha vida, não se sinta especial.

Fecha cortina.Um choro.

Abre a cortina e o choro é seu.

Limpa as lágrimas. Diz :

- Hoje tenho um encontro comigo. Vou levar-me a passear pelo mundo.

Sai pela porta lateral. Quem volta sou eu.

- Meu passeio foi bom.

Sento no computador a matutar um texto com um fato real:

"Depois que colocou as mãos no pequeno pé de manjericão da minhahorta, ele renasceu com grandes folhas, grandes demais pro seu pequeno tamanho."

A cortina fecha ao som de "So What?", Miles Davis, versão do discoCooking with the Miles Davis Quintet, de 1957.

Friday, May 01, 2009

Obedeça o papai.


O aviso pendurado na parede era bem claro:

"Não mexer nos cutelos"

Mas elas não ouviram. Subiram na pia, abriram o armário e junto deles, mexeram nas facas de peixe e nas de corte mais afiado. Separaram a comida do cachorro, deram de beber as plantas e então, plenamente satisfeitas do não haver mais responsabilidades, deliciaram-se a enteder as facas espalhadas pelo chão.

Quando a menor deixou cair o cutelo nos dedos da garotinha de 7 anos, foram três os dedos que se partiram. Três também foram os gritos de susto que deram antes de cair em gargalhadas. No auge dos seus cinco anos, abaixada recolhendo dedos da irmã e enxugando o sangue, perdeu seu braço pra uma vingança divertida.

As risadas eram ouvidas do jardim. Qualquer que se aproximasse veria no inconsciente duas garotas a se divertir com bonecas.