Friday, May 08, 2009

Roteiro do não ser.

Não é um conto. Não é um cheque mate, não é um peão sendo comido pela rainha nem o rei derrubando uma torre.

É uma peça de teatro.

E estou sozinho assistindo da platéia.

Cortinas vermelhas fechadas. Entra a voz de Nós, o narrador:
- Eu te dizia por muito tempo que só existiria nós dois quandoexistisse um eu e um você. E agora que eles existem, assisto aosensaios do que poderiamos ou podemos ser juntos sozinho no teatro.

Abrem as cortinas. Eu acendo um cigarro e tomo mais café.Sou diretor de arte, que colori cenários, seleciona as mesas, o menu eas garrafas de vinhos, os lençóis. Sou o roteirista e sou o diretor.

Quem senta ali no palco contigo não sou eu, mas um eu que junto comvocê faz um nós.

Estamos na mesa de jantar.

Eu no palco digo:

- Não tentar denovo me parece um grande erro atemporal. É a históriado você só me fez mudar, mas depois mudou de mim. E vale para aperspectiva de ambos. Não há julgamento de momentos ou conversas com oacaso de “seria esse o tempo pra isso acontecer?". É um estado deespírito, que não impede a vida plena e não trás a morte.

Você diz:

- É complicado.

Nós diz:

- E não pensaram mais nisso juntos. Os pensamentos percorrem ascabeças e morrem em suas próprias paredes, que nunca dividiram.

Comemos. Nos olhamos e sorrimos.

Sobe a música e o roteiro empaca. Não existem tantas falas possiveis,salvo alguns clichês de convivência.

Troca o cenário.Um dia numa praça do relógio ao sol é o que acontece. Apenas diversões. Nos namoramos.

Nós:

- Nós namoramos por muito tempo, mas poucos nos namoramos como fizemospor lá. Não havia calma em nós.

O cenário corre. Volta a sala e estamos vendo um filme.

Alguém bate na porta. É o acaso.

Ele diz:

- Não ter quem mais se ama é estar sentando na estação de trem epensar no caminho que se fez pra chegar até ela, em cada estaçãopercorrida, e saber que o trem já passou. Cada trem novo enche aplataforma, expectativas, desastres, amores e rancores, mas não é omesmo trem.

Você sai de cena.

A vida de solteiro se enche de amores, cigarros e orgias. Existem festas e um grande fluxo de pessoas. Existem trabalhos. Existemcrianças e troca recíproca de sentimentos.
E depois um vazio.

Volta o acaso:

- Não há espaço no roteiro para a matemática do improvavél. Ela sóacontece quando catalizada. Quando se deixa transparecer informações.

Levanto do sofá e digo:

- Quero que saibas: te entendi por esse tempo muito mais do que imagina. Não entro nas mazelas que diz que sabe. Seria sadomasoquismo. Acredito num nós que não sei se é real. Mas ele anda me cercando, me tocando. Elucida que pode existir nessa inexistência.

Um barulho grande. Um grito agudo.

Eu digo:
- Limpar minha consciência de que? Não há ferida que não sejacicatrizada. Ancorar no passado não se deixa viver o presente e faztemer-se o futuro. Se o caminho que percorremos nos trás até aqui, semmedo ou vergonha do que se passou, é com isso que temos de trabalhar.Não há perfeição sem que se parte imperfeição. E disso contruo todaminha vida, não se sinta especial.

Fecha cortina.Um choro.

Abre a cortina e o choro é seu.

Limpa as lágrimas. Diz :

- Hoje tenho um encontro comigo. Vou levar-me a passear pelo mundo.

Sai pela porta lateral. Quem volta sou eu.

- Meu passeio foi bom.

Sento no computador a matutar um texto com um fato real:

"Depois que colocou as mãos no pequeno pé de manjericão da minhahorta, ele renasceu com grandes folhas, grandes demais pro seu pequeno tamanho."

A cortina fecha ao som de "So What?", Miles Davis, versão do discoCooking with the Miles Davis Quintet, de 1957.

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