Saturday, November 25, 2006

A chuva nunca para de cantar.




Madrugada de dia cinza, dia bonito. Cheio de paixões novas vou pra casa pelo caminho lavado que a chuva me presenteia, pensava: se ela se fizesse perto, as cores que carrego seriam mais nítidas. De mansinho ficou doce, disse sem medo o que pensava e acatou tantas idéias com sorriso. Meninagem de moleca sabe? Dividir naturalemente as angústias e alegrias tanto e conhece-la tão pouco. A chuva corre fria e, me permitam vocês dizer, dela sinto falta.

Sunday, November 19, 2006

Albergados.

Foto: Sebastião Salgado

- Qual o nome do senhor?
- Cláudio Tavares.
- Quantos anos?
- 52.
- Grau de escolaridade?
- Segundo Grau completo. (esboça um tímido e orgulhoso sorriso)
- Em caso de emergência, tem pra quem ligar?
- Sim. Ligue pra um amigo. 33614563.
- Já que o senhor já sabe as regras, vou leva-lo a sua cama.
- Obrigado, sei sim. "Não causar problemas". A vida já se encarrega disso.

Feito o cadastro, foi levado ao dormitório. A responsável pelo Albergue Espaço Luz encaminha-o primeiro ao quarto 24, mas a lotação das 5 beliches do cômodo leva-os a subir ao andar superior, onde enfim encontra um leito. Acomoda com carinho a mala com poucas roupas ao lado da cama que será sua essa noite, já o fora de tantos outros, e desce a sala de TV. Cláudio tem família em Franca, boa articulação e vasto vocabulário, mas incomoda-o falar do passado, "traz lembranças dolorosas". Bem vestido e discreto, o senhor negro com fundas marcas de idade no rosto acomoda-se na cadeira de plástico branco e passa a integrar a sala onde tantos outros homens já estiveram. "Da tristeza ver gente como ele aqui", diz uma funcionária.
Pessoas como Cláudio são raras no Espaço Luz., apesar do desgastado prédio marrom de cinco andares em frente a Praça Princesa Isabel ter o costume de receber migrantes sem estrutura na cidade. Mas a maioria das 100 vagas, divididas em 10 cômodos que outrora foram apartamentos, é ocupada por homens em situação de rua. Em rostos amargos sem sonhos, a angústia de não poder chamar um leito de "meu". Um cheiro triste envolve o ar, e o fluxo de pessoas aumenta assim que o sol põe-se a cair. O Espaço Luz, assim como outros 8 albergues, funciona apenas no período noturno, das 16 às 8 horas. Dispõe de aulas de alfabetização, jogos de dominó, refeitório (onde a janta sai pontualmente as 18 horas todos os dias), lavanderia e bagageiro. Há ainda palestras e o incentivo a rodas de conversas. Tem vagas destinadas apenas à homens, visto que correspondem a mais de um terço da população de rua.
O que leva as pessoas a procurar um albergue da prefeitura é tão difuso quanto o perfil dos albergados. Migrantes como Cláudio estão ali de passagem, e, apesar de ser a meta de todos, muitos ficarão ali mais tempo do que o desejado. Dario, 32 anos, viveu alguns anos peregrinando por albergues, até adquirir, por meio da venda da revista OCAS, condições de alugar um apartamento. "A primeira vez que dormi num albergue dei graças a deus. Tomei um banho quente, e pude saciar a fome com pão e café, pude dormir em um colchão. Mas o ambiente é pesado". Brigas surgem de simples esbarrões na filma dos refeitórios, por escassez de paciência e nervos já desgastados. "Ao descer de uma beliche, esbarrei meu pé acidentalmente no rosto do que dormia na cama de baixo. Era um traficante de drogas, saído da cadeia a pouco tempo. Fui embora antes do amanhacer, senti que ele ia me matar. Apesar da revista, matam-se pessoas até com uma caneta" conta Dario.
Enquanto a oportunidade não chega, os albergues continuam a única opção de quem tem de dividir seus sono com tantos outros, sem poder concretizar o sonho de um lugar seu. São quase sete horas, e Cláudio deve arrumar agora sua surrada mala enquanto espera o pão e o café quente, quem sabe a única refeição do seu dia.

Monday, November 13, 2006

Hospital.

Pensava que era ilimitada. Isso explicaria a constante lotação dos computadores, presente em todas as tentativas até então de trazer minha irmã pra ver emails enquanto empurro a cadeira de rodas para o habitual passeio cotidiano. Mas a internet do hospital São Camilo tem um (fraco) bloqueio. Ora, não se abre o site direto do hotmail, mas pode-se acessá-lo pelo da msn. Salvo isso e a lanchonete, é um bom hospital. Supre todas as necessidades do tratamento de minha irmã, inclusive um roteiro de passeios. Desde que o corte que fez no pé ao pisar na tesoura de jardineiro aberta no chão, olhando um vizinho cujo tem certo apreço, é essa sua maior forma de descontração (além dos enlatados americanos da TV acabo que consome faminta).
O ponto alto do passeio é a maternidade no sexto andar, um acima do seu. Sabe a quantos dias os 6 bebês estão ali, seus nomes, qual passou pela incubadora e o que chora mais agudo. Sabe também seus nomes, mais isso já se estende a todos os que tem contato no hospital, sempre com o prefixo de "tio" ou "tia". O passeio de todo dia causa, além de faze-la sorrir, um grande alvoroço pelas recepções a quais passamos. Na cadeira de rodas, uma menina com tubos no braço já prontos pra receber remédios, por náuseas ou mesmo os antibióticos/antinflamatórios, é empurrada por rapaz que recebe a alcunha de senhor, quando é indagado por que ele pensa que pode andar com ela pelo hospital. As enfermeiras, de forma sincronizada com nosso andar como um balé aquático, levam os telefones aos ouvidos enquanto nos olham de forma curiosa, talvez reprensora. Isso nos diverte. Me irrita e me fascina o modo como me deixa guiá-la. Me incomoda o fato do que esta bom pra mim estar bom pra ela, talvez por não saber nem o que é bom pra mim, mas o modo doce como o faz me deixa cada dia mais apaixonado.

Trecho do livro imaginário "Marcela, a descoberta."

Tuesday, November 07, 2006

A despedida do Mombojó.


Vestidos coloridos, camisetas da então recém terminada 30º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e camisas listadas nos ajudam a traçar o difuso perfil do sortudo público que assistiu a última apresentação em São Paulo dos jovens pernambucanos do Mombojó esse ano (salvo, assim espero, um engano de Chiquinho, tecladista e também responsável pelos samplers da banda). Fechando o ciclo de apresentações no sudeste, que conta com a excelente mas curta participação no Tim Festival, a banda subiu ao palco da chopperia do Sesc Pompéia (onde já havia tocado na sexta), no último sábado, dia 4.
Pontualmente as 21 horas, a bossa Merda abriu sorrisos e fechou olhos, enquanto a menina balança seu vestido florido. O rapaz com camiseta da mostra permaneceu apoiado na pilastra, mas balbuciava a letra da música com afinco, enquanto o de camisa listada esboçava alguns passos de samba. "Tá todo mundo dançando eu também quero dançar" dizia a letra de A Missa, trilha de ombros que se moviam com certa delicadeza na cadência da música. Depois de Realismo Convincente, Tempo de Carne e Osso e Pára-quedas, já eram muitos os vestidos que dançavam quando Swinga fez o vocalista Felipe S. convidar pra se juntar a ele algumas pessoas a swingarem, como ele mesmo disse. Desde o começo, Felipe dominava cada espaço do palco, e o dividiu sem problema com os que lá subiram e dançaram, felizes. O repertório, misto dos dois cds da banda, contou ainda com Saborosa, Video-Game, O mais vendido, Adelaide, Homem Espuma e terminou com Deixe-se acreditar, a mais aclamada do show. A camiseta da mostra ainda pulava, e o bis trouxe Faaca e Fatalmente. Listas e golas, vestidos e o rosto vermelho do festival de cinema aplaudiram, e saíram amargurados por ter de esperar até o ano que vem por um bis.

Saramago.

Friday, November 03, 2006

Até onde vemos quando olhamos?



A diferença entre o azul do mar, o amarelo do sol e o intenso brilho presente no fundo dos olhos da pequena menina que assiste as patifarias de um palhaço se torna grande e perceptível, desde que se possua em perfeitas condições um dos mais intrigantes sentidos humanos, a visão. Mas o fato do homem enxergar o que o cerca não tem grande valia se ele não conseguir ver também o invisível. Ao olhar a menina e só ver ali seus fixos olhos castanhos a se entreter com o palhaço enquanto balança o vestido utilizando apenas uma das mãos, e deixar de enxergar seu fascínio ao admirá-lo, deixar passar os sonhos que começam a surgir ali e a felicidade escondida atrás do tímido sorriso é um grande desperdício do sentido. Por mais que para muitos o tema possa parecer apenas um defasado romantismo, a questão é crucial para primeiros anos desse novo milênio, levando em conta a realidade em que nos encontramos: estamos todos cegos. Não no conceito de cegueira biológica, que consiste na ausência parcial ou total da visão, mas cegos por abundância de informações visuais (já que as imagens passaram a vender, e não a acrescentar idéias) veiculadas com tamanha rapidez que não conseguimos absorver, e tornamos nossos olhares superficiais. "Quem é que não enxerga aqui, será eu ou você que não percebe?", cantam os brasilienses da banda Móveis Coloniais de Acaju, ao descrever o diálogo de um cego questionando um rapaz cuja visão não apresenta lesões.
Essa idéia está presente também no documentário brasileiro Janela da Alma, premiado na Mostra BR de Cinema de São Paulo e em outros festivais pelo país, onde os diretores João Jardim e Walter Carvalho constróem um panorama sobre o assunto, com entrevistas semelhantes, mas com visões construídas a partir de realidades visuais diferentes. Contam com 19 nomes (obtidos em uma triagem de 50), como o músico Hermeto Pascoal e o fotógrafo franco-esloveno Eugen Bacar, cada qual ressaltando suas mediações de experiências por seus defeitos visuais e como desenvolvem artifícios que muitas vezes suprem a falta da visão. As entrevistas, e mesmo as imagens que as costuram, contam com a genialidade dos diretores ao utilizar uma linguagem visual com grande variação (ora desfocadas, ora perto demais), e nos ajudar a compreender as dificuldades que a falta total ou parcial da visão nos impõe. Na melhor participação do documentário, Bacar diz que apaixonava-se pelas paixões de seus amigos, sem ao menos vê-las, e aprender a ver por si mesmo foi difícil, mas crucial pra sua vida. O fenômeno da desvinculação do verbo da imagem, onde elas já vem prontas, e não mais precisam da imaginação para serem formadas dialoga com o conceito da cegueira que nos atinge hoje.
Segundo José Saramago, escritor português vencedor do Prêmio Nobel de Literatura e autor do livro Ensaio sobre a cegueira que também participa do documentário de Jardim e Carvalho, estamos mais do que nunca vivenciando a Caverna de Platão, mito onde os homens estariam presos e só enxergariam sombras, mas as tomariam como realidade. No livro, uma súbita cegueira branca sem lesões orgânicas atinge a uma sociedade inteira, excluindo-se apenas a mulher de um oftalmologista. Talvez ser a única a demonstrar um certo altruísmo fez com que Saramago poupa-se a mulher do médico da cegueira leitosa, que estimula os homens a repensar os vínculos humanos mais primitivos. Saramago omite o tempo e o lugar, e reduz os personagens a adjetivos como "rapariga" e "primeiro cego", refletindo através desse tom impessoal uma sociedade doente e fútil, onde as relações humanas cada vez mais se enfraquecem em prol das individualidades, do olhar já condicionado sobre as coisas. Com uma narrativa que foge as regras convencionais de pontuação da língua portuguesa, propõe uma outra forma de se "enxergar" o texto, e requisita a total atenção sobre ele. Dialogando com o depoimento do cineasta Wim Wenders em Janelas, busca assim que reaprendamos a olhar as coisas com mais atenção, a ver menos, mas com maior intensidade.
Essa cegueira, que como agravante possui uma sobrecarga de mídias recheadas de imagens prontas a serem consumidas sem muita reflexão, tem cura, basta ter a consciência dela. Ainda está em tempo de procurarmos em sorrisos tímidos diante aos palhaços felicidades escondidas.
Já que o blogger.com não quer que eu coloque fotos no meu blog, isso considerando o fato de confirmar o upload e elas não aparecerem, deixo aqui um singelo protesto.
(Aqui, caso isso funcionasse, viria uma foto do imaginário singelo protesto. E no começo do post, José Saramago segurando uma bolinha no olho)