Friday, November 03, 2006

Até onde vemos quando olhamos?



A diferença entre o azul do mar, o amarelo do sol e o intenso brilho presente no fundo dos olhos da pequena menina que assiste as patifarias de um palhaço se torna grande e perceptível, desde que se possua em perfeitas condições um dos mais intrigantes sentidos humanos, a visão. Mas o fato do homem enxergar o que o cerca não tem grande valia se ele não conseguir ver também o invisível. Ao olhar a menina e só ver ali seus fixos olhos castanhos a se entreter com o palhaço enquanto balança o vestido utilizando apenas uma das mãos, e deixar de enxergar seu fascínio ao admirá-lo, deixar passar os sonhos que começam a surgir ali e a felicidade escondida atrás do tímido sorriso é um grande desperdício do sentido. Por mais que para muitos o tema possa parecer apenas um defasado romantismo, a questão é crucial para primeiros anos desse novo milênio, levando em conta a realidade em que nos encontramos: estamos todos cegos. Não no conceito de cegueira biológica, que consiste na ausência parcial ou total da visão, mas cegos por abundância de informações visuais (já que as imagens passaram a vender, e não a acrescentar idéias) veiculadas com tamanha rapidez que não conseguimos absorver, e tornamos nossos olhares superficiais. "Quem é que não enxerga aqui, será eu ou você que não percebe?", cantam os brasilienses da banda Móveis Coloniais de Acaju, ao descrever o diálogo de um cego questionando um rapaz cuja visão não apresenta lesões.
Essa idéia está presente também no documentário brasileiro Janela da Alma, premiado na Mostra BR de Cinema de São Paulo e em outros festivais pelo país, onde os diretores João Jardim e Walter Carvalho constróem um panorama sobre o assunto, com entrevistas semelhantes, mas com visões construídas a partir de realidades visuais diferentes. Contam com 19 nomes (obtidos em uma triagem de 50), como o músico Hermeto Pascoal e o fotógrafo franco-esloveno Eugen Bacar, cada qual ressaltando suas mediações de experiências por seus defeitos visuais e como desenvolvem artifícios que muitas vezes suprem a falta da visão. As entrevistas, e mesmo as imagens que as costuram, contam com a genialidade dos diretores ao utilizar uma linguagem visual com grande variação (ora desfocadas, ora perto demais), e nos ajudar a compreender as dificuldades que a falta total ou parcial da visão nos impõe. Na melhor participação do documentário, Bacar diz que apaixonava-se pelas paixões de seus amigos, sem ao menos vê-las, e aprender a ver por si mesmo foi difícil, mas crucial pra sua vida. O fenômeno da desvinculação do verbo da imagem, onde elas já vem prontas, e não mais precisam da imaginação para serem formadas dialoga com o conceito da cegueira que nos atinge hoje.
Segundo José Saramago, escritor português vencedor do Prêmio Nobel de Literatura e autor do livro Ensaio sobre a cegueira que também participa do documentário de Jardim e Carvalho, estamos mais do que nunca vivenciando a Caverna de Platão, mito onde os homens estariam presos e só enxergariam sombras, mas as tomariam como realidade. No livro, uma súbita cegueira branca sem lesões orgânicas atinge a uma sociedade inteira, excluindo-se apenas a mulher de um oftalmologista. Talvez ser a única a demonstrar um certo altruísmo fez com que Saramago poupa-se a mulher do médico da cegueira leitosa, que estimula os homens a repensar os vínculos humanos mais primitivos. Saramago omite o tempo e o lugar, e reduz os personagens a adjetivos como "rapariga" e "primeiro cego", refletindo através desse tom impessoal uma sociedade doente e fútil, onde as relações humanas cada vez mais se enfraquecem em prol das individualidades, do olhar já condicionado sobre as coisas. Com uma narrativa que foge as regras convencionais de pontuação da língua portuguesa, propõe uma outra forma de se "enxergar" o texto, e requisita a total atenção sobre ele. Dialogando com o depoimento do cineasta Wim Wenders em Janelas, busca assim que reaprendamos a olhar as coisas com mais atenção, a ver menos, mas com maior intensidade.
Essa cegueira, que como agravante possui uma sobrecarga de mídias recheadas de imagens prontas a serem consumidas sem muita reflexão, tem cura, basta ter a consciência dela. Ainda está em tempo de procurarmos em sorrisos tímidos diante aos palhaços felicidades escondidas.
Já que o blogger.com não quer que eu coloque fotos no meu blog, isso considerando o fato de confirmar o upload e elas não aparecerem, deixo aqui um singelo protesto.
(Aqui, caso isso funcionasse, viria uma foto do imaginário singelo protesto. E no começo do post, José Saramago segurando uma bolinha no olho)

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