Friday, November 28, 2008

Sarjeta.

Descia a rua cantarolando música qualquer. Já era fria a madrugada cinza, e quase tropeçou numa garrafa vazia. Deu graças pela sorte de sair ileso e reparou na moça que chorava sentada na calçada. Quis ser gentil.

- Não se chora a essa hora por aqui. Essa hora, tudo é festa ou motivo para tal.

E entregou-lhe a pequena flor que pegou do chão quadras atrás. Só depois viu que uma das pétalas estava pisoteada. A moça nem o olhou. Seu choro já atingia o desespero. Soluçava e gritava ardido. Abaixou e pensou em recitar à ela um poema, mesmo que um ode ao choro.

- Vou lhe dizer algo bonito então.

Respirou fundo, estufou o peito e releu mentalmente o curto poema pra que nada se esquecesse. Enchendo-se de sorrisos, não reparou que a moça colocava com esmero o longo cano na boca. Antes de articular a primeira palavra, espirraram-lhe sangue e míudos pedaços de cérebro. Continuou ali até a chegada da polícia, repetindo o mesmo verso:

- A menina que hoje chora. A menina que hoje chora. A menina que hoje chora.

Tuesday, November 11, 2008

Assinatura cancelada.

Tomou o café preto com omelete sem ler nada. O jornal atrasou 37 minutos naquela manhã. Chegou quando, já de banho tomado, arrumava a gravata e ligava pra reclamar da demora. Entendia as variáveis que permeavam a entrega, mas em três anos de assinatura, chegou sempre entre as quinze pras seis e seis e quinze. Passar trinta e sete minutos do limiar era demais. Não havia acontecido nada de extraordinário, nenhuma notícia que não passou no jornal da meia noite. Assinava o jornal apenas pra disfarçar a falta de companhia no café da manhã. De que adiantava chegar tão tarde?

Há três anos acorda sempre as quinze pras seis, mesmo nos fins de semana e feriados. Lê o jornal todas as manhãs com omelete (três ovos e um pouco de parmesão ralado) e café preto sem açúcar. Um banho ligeiro, faz a barba e veste-se enquanto vê o jornal da manhã na televisão. Rega com pouca água a pimenteira, parte da terapia que desenvolveu pra si, e deixa o lixo pra reciclagem.


Sem ler o jornal, não teve tempo de pensar no mercado financeiro durante o banho. Esqueceu de fazer um dos lados da costeleta por medo de se atrasar. Mal conseguiu entender as notícias do jornal da manhã. A gravata ficou torta, e derrubou a água do prato da pimenteira em cima dos sapatos que lustra todo domingo de manhã. Mandou o lixo ir trabalhar e deixou-se, como terapia, na reciclagem.