Monday, June 14, 2010

Noite de vigília.


Mais um barulho lá fora. Seco como madeira batendo no metal.
Carol deixa seu descanso de lado, levanta com o edredon e vai conferir as janelas.
Olha a janela de fundo pro terminal de Cargas, atravessa o salão e ve as da frente, para as Cohabs.Volta aliviada e deita novamente.
Outro barulho estranho e ela levanta.
"É muito barulhinho né. Vários barulhinhos..."
Levanta e repete a vigília. É o turno dela como observador de janelas, eu estou do turno que usa a internet para divulgar comunicados, vídeos e fotos sobre o CICAS.

"Um café é essencial né" me diz Carol, depois de sentar e acendar um cigarro no palco.
"Tem café ai não tem?" pergunto esperançoso.
Não..."

Outro barulho, de carro freando.
Lá vem a paranóia de que alguém está preparando uma emboscada para entrar no espaço.
Está muito frio, e sem cortinas, o vento estrupra as janelas antes de nos alcançar. De onde escrevo, vejo a biblioteca sem livros.

"Paraná?" alguém grita de fora.
Carol e eu levantamos assutados de nossos postos. Um de cada lado da janela, e vejo um homem de boné e camiseta de manga curta;
"Paraná?"
O homem vai embora.

Converso com Carol na base dos sussuros.
"Há duas atrás, quase meia noite, um homem negro, de aproximadamente 35 anos aparace na janela.
"Ae moleque doido".
É Sabotagem, uma espécie de caseiro do espaço. Apareceu em algum momento desse processo e se instalou onde antes era um banheiro externo. A passagem para o espaço foi lacrada há muito tempo.
"Salve Sabota. Que manda?"
"A paranaense tava aqui."
"Quem é paranaense?" - perguntou o Roger.
"Uma mina que vem fuma pedra por esses lados. Tava mexendo no registro de água pra encher a garrafinha pra poder fumar. Já falei pra ela, não é pra ficar aqui. Valeu moleque doido? Nois" - e foi embora"

Voltamos aos postos. Penso que a Carol tem razão, café realmente faz... outro barulho, dessa vez bem maior, algo grande de metal parece caído.
Carol salta do palco. Conferimos as janelas.
"Veio lá do fundo" me diz, com a câmera de vídeo na mão, nossa maior arma. O proceder é simples: qualquer atividade estranha será registrada. Tudo é suspeito.
Nada decorre do barulho.

Já acostumamos com a rotina. Um motoqueiro vindo visitar a namorada na Cohab da frente nos parece um espião da polícia civíl sacando a movimentação do lugar. Um triscado, um chinelo batendo no chão, um cachorro que corre e tromba qualquer coisa, um barulho de carro. Qualquer coisa e já estamos nas janelas, com a câmera na mão, pensando "pronto! eles chegaram".

"Sua cara eu não aguentei. Olhão aberto. Tensão total." me disse Carol, depois que me assustei com algum deles, riu e voltou a deitar.

Agora já faz uns cinco minutos que ela olha fixa para a janela que dá para o portão de entrada do CICAS, enrolada no cobertor. O frio é daqueles de umidecer as meias.

Do nada ela joga o cobertor para trás e sussura forte: "Pedro! A polícia está ai"
O mesmo frio que corre cortando meus músculos me impulsiona e já estou na janela, olhando de canto.
"Não to vendo, não to vendo"
"Passou um carro deles ai, com as luzes apagadas! Fica atrás do lençol, sai dai!"
Tiro a cabeça da janela e me escondo atrás do lenço, estrategicamente posicionado para conseguirmos espiar o mundo lá fora.
"Na verdade a gente não podia estar aqui né"
"Nunca pudemos" retruco olhando a janela.
"Agora mais do que nunca" - ela se refere a invasão da polícia militar na sexta-feira, quando vieram desocupar o espaço com sua amável conduta de "vou te arrebentar porque você é um vagabundo".

Carol entra no estúdio e começa a acordar Farley. São quatro pessoas dormindo ali, e se os policiais resolverem tentar entrar agora, temos que estar a postos.
O primeiro passo é ligar pro Roger. Ele então aciona a mídia, que já esta esperando também. Assim, as pessoas vão se ligando e se movimentando, e a espectativa é que antes que os policíais consigam arrebentar os cadeados e entrar no espaço, o lugar esteja tomado de gente.

"Não é normal isso Carol? Passar viatura aqui de luz apagada?"
"Normal é! Mas na atual situação..."

Ficamos um pouco mais tranquilos. Fico de tocaia na janela do fundo, Carol atrás do lençol.
Ficamos ali, olhando para o nada, esperando perceber despercebidos a ação de invasão. Qualquer coisa que reluza pode ser uma arma. Qualquer barulhinho um sussurro.
O tempo parece não passar e parece correr. O relógio aqui corre de um modo bem peculiar.

Desisto da vigília depois de um tempo e vou no banheiro.
Quando saio, Carol ainda está ali, e já acendeu outro cigarro.
"Você cagou no banheiro das meninas?"
"Você não vai contar né?" - o banheiro era o único lugar que tinha papel.
"Vou contar pra todo mundo amanhã"

A tensão proporciona algumas risadas.
Da janela dos fundos, vejo o parquinho iluminado e o adorno negro dos caminhões, estacionados ali enquanto seus motoristas procuram algo pra se distrair. Uma cachaça, uma pedra de crack, uma prostituta, ou tudo.

"Sabe, quando eu estava lá acordando o Farley, eu achei que estava cutucando o pé, mas era a cara dele!".

Rimos um pouco. Daqui a pouco outro barulho nos faz repetir o processo, incansávelmente.
Faltam menos de cinco minutos para os plantões serem trocados, são quase duas e meia da manhã.

"Parece que demora um tempão né?"
"Sim" concordo com ela, que acende outro cigarro.

1 comment:

Anonymous said...

nOSSA.. muito tenso!
fiquei aflita, com frio, vontade de fumar, dor de barriga, ri, entrei no delírio de paranóia e tudo mais...
texto excelente!
Li