Saturday, December 23, 2006

Isadora.

Naquele dia acordou com 70 anos. Talvez a única coisa que deseja-se, um sorriso sincero do mundo ou mesmo do espelho, estivesse tão distante quanto suas rugas. Sentou-se no banco de todas as manhãs, viu as sombras das folhas dançando no chão como costume e pegou um cigarro. Custou a acende-lo; as folhas que desciam de seus galhos o enfeitiçavam. O que teriam de diferente naquele dia?

Em deboche, a caixa do correio não se deixava fugir de vista. Ninguém escrevia ao Coronel, era ousado ao despedir-se assim da filha dele, mas covarde não faria diferente. Como a passagem do tempo podia moldar outras pessoas, mal reconhecia a mulher que fizera. Seus brilhos eram falsos, e buscando repouso do alto que uma folhinha deitou em sua perna. Pequena manifestação de delicadeza que o assustava de mistério.

Isadora costumava sempre se vestir bem. O cabelo preso num coque representava bem a personalidade resguardada. Escondia-se no funda da caixinha de música francesa, presente da avó, e ali dançava regida por Edit Piaf. Por vezes culpava o velho Coronel de joga-lo tão fundo, outras a si mesmo. Num tapa no ar, a pequena hóspede voou de seu joelho na coreografia circular que a levou até ali.

Levantou aflito, passou o café e não atendeu o telefone gritar desesperado, nem as batidas que ouviu na porta. Pouco importavam quem fosse, e a flor em tons pastéis da xícara se enrubescia de fazer parte daquilo. Isadora caiu como caiu a folha do joelho, que diferente dela, permaneceu na sombra do quintal ainda por uns dias.

Foto retirada de http://www.flickr.com/photos/seveneleven/309373859/

Hello, Dolly.

http://livromoderno.blogspot.com/

Friday, December 22, 2006

De Tito a Brunnen.


O espetáculo corria bem. Do estilo New Orleans, permeado por todas as vertentes que o fizeram desde o blues no seu lado coral do sofrimento dos negros americanos, aquele jazz emoldurava um fim de ano atípico, mas nem por isso menos prazeroso. A companhia saia há poucos meses do fundo da gaveta das pessoas que passam pela vida e ganhara status de melhores acontecimentos dos últimos tempos. Intrigado, passou a admirar os momentos em que lhe passava a garrafa d'água, onde os dedos por mais que inocentes se tocavam. Logo virou brincadeira, onde polegares, indicadores e dedões se enfrentavam vigiados de perto por olhos atentos. O braço tomou o contorno do pescoço dela e o beijo pareceu tímido, como tantos outros seriam aquela noite, e foi reconhecido por aplausos que como eles tinham esquecido do pequeno clarinetista Tito.

O quinteto de Tito deixou seus pontos. Na cerveja de depois os assuntos foram muitos, e distantes deles reestruturaram seus amores. O chopp escuro foi a saidera, e o brinco que caiu virou suvenir passageiro. Despediu-se e agradeceu a carona ao sair do fusca verde abacate, imponente como só, vestiu o terno e acendeu um cigarro. Quantas cervejas ainda não seriam tomadas em memória.

Sunday, December 17, 2006

E.. se foi.


No caminho escreveu-lhe uma carta. Dizia ali tudo que nunca disse, de forma que nunca disse. O percurso sempre vazio estava cheio, domingo de manhã. Os vintes minutos tardaram a passar, cada estação do metro parecia uma cidade diferente. Prometera uma ligação à ela logo cedo para um boa viagem, mas decidiu por aparecer lá e fazer-lhe surpresa. Chegou afoito, e percorreu toda a rodoviária, quem sabe ela já não estaria por lá. Resolveu então ligar, e a voz que atendia dizia sempre a mesma coisa de após o sinal. Sentou encostado na parede em frente as companhias que vendem bilhetes de ônibus que vão ao Rio de Janeiro quando o sol só tocava a ponta dos seus pés e acendeu um cigarro. Quando levantou o sol já cobria toda a parede, o ponteiro menor do relógio já passava das 11 e as bitucas dos vinte cigarros do maço lotavam os 3 copos de café. E nada dela.

Saturday, December 16, 2006

E se sesse.


Podia ter ligado antes, mas passou o dia na rede branca pendurada no estreito quintal. Passava as mãos pelas franjas bordadas da rede a confabular a ligação. Pensou cada respiro, cada pausa, cada tom de pronuncia. O sol se foi atrás do prédio, e então percebeu a luz da cozinha que tinha deixado acessa desenhar reflexos no muro do quintal ao passar pelo vidro da janela. Já era tarde, mas admirou o telefone um bocado, era ele quem lhe traria a voz dela.

Quando um Oi acabou com ligeiros e agoniantes toques, caiu por terra toda uma tarde. A tenda de circo havia furado, e a chuva que entrou não deixou nem vigorar uma semente que serviria de história. Em segundos iria embora, e só voltaria para ir embora de novo, nem sabe quando volta. A pretenção era chegar por volta das sete matutinas na rodoviária. Despediu-se rápida com um beijo doce.

Voltou para a rede, e fez dela um casulo. O cigarro que acendeu virou cinza inteiro, o café esfriou, o disco terminou e ninguém foi lá pra vigorar a vez do lado b. As nuvens prateadas o convidaram, dançaram devagar e ele não se moveu. Num ímpeto, encheu a cara de coragem, pulou da rede e se vestiu as pressas. Desceu as escadas rapidamente e no caminho apanhou a flor do solitário vaso de porcelana da pequena mesa de centro da sala. A rodoviária ficava apenas a vinte minutos dali.

Thursday, December 14, 2006

E se chover demais..

Coisas boas.


Não dava pra esquecer. Flor antiga, que deixou sua marca. Talvez soe nostálgico, pois é marca pra vida toda, aquele pedaço que se divide o antes e depois. Uma lição de encanto pra aprender que passou, e foi rápido assim pra intensidade que fez amadurecer. Parabéns moça.

Wednesday, December 13, 2006

Orfão de chaleira.

Se contassem todas as folhas de hortelã que passaram por aquele filtro dentro dela só nos ultimos anos, forrariam-se dois travesseiros. Era o ritual bobo de sempre: colocava as folhas de hortelã (as mais graúdas) que pegava no jardim de casa, enchia de água até a metade e acendia o fogo, com o cuidado de levantar a alça pra que não esquentasse. Não tardaria até que pelo bico terminado em chanfro subisse o vapor avisando que o chá está pronto. Pelo mesmo bico desceria então, mas as folhas ficariam presas dentro do filtro, colocado antes da tampa. Encheria a caneca vermelha até dois dedos da borda, e uma colher de açucar seria o suficiente. A chuva ou o sol dariam o tom do cenário, e na janela seria apreciado o chá. Voltaria então a cozinha e lavaria a pequena chaleira, mais velha do que meus vinte anos, que já estava fria, e guardaria no canto esquerdo inferior do armário.
Até o dia em que o armário foi arrumado, e quem o fez julgou que aquela chaleira pequena e amassada merecia o lixo. Foi a última vez que soube dela.

Monday, December 11, 2006

Como antigamente.




Em meio as pastilhas brancas adornam janelas vermelho tijolo, ela fumaria um cigarro confundindo a fumaça com as nuvens em volta da lua, branca. Pensaria algo distante, além do desenho daquela noite e dos prédios que limitam sua visão. A água gelada ameniza a noite quente paulista, e do nono andar, uma das poucas luzes acessas no prédio, ecoa no vento uma bonita cantiga antiga. Olha de repente pra baixo, e o vê ali no seu passo tranqüilo carregar uma flor. Os olhares não tardam a se encontrar e virar sorrisos, e enquanto o elevador vira uma eternidade, a rua toda a espera ansiosa, sem se mover.

O tempo de ontem e o tempo de hoje.

O sol floresce em mais um dia de verão, e seus primeiros raios são o suficiente pra fazer levantar o homem, já acordado. Tem de se apressar e ir pra lavoura, existe muito trabalho por lá. O tempo passa rápido quando se trabalha, e o sol já está a pino. Hora de descansar e almoçar sob a sombra de uma árvore enquanto espera o calor se tornar mais ameno. Os dias são longos no verão, e tarda até o sol começar a se por. O homem volta pra sua casa e pouco tempo depois se põe a dormir.
A percepção do tempo do homem da realidade acima sofreu grandes transformações com a revolução industrial. Se chovesse no seu dia ele não sairia de casa para a lavoura enquanto ela não cessasse, e se a estação do ano fosse outra, como a primavera, quem sabe só ficaria na varanda de sua casa esperando a colheita. A revolução industrial fez com que os vínculos do homem com o trabalho fossem profundamente alterados, a começar pelo fato de agora o trabalhador ser uma mercadoria; onde antes se contratava um homem como um todo, pelo período de 1 ano por exemplo, agora contrata-se por horas a serem cumpridas, dividindo o tempo entre hora de lazer e hora de trabalho. O trabalho, que cada vez mais fazia o homem se relacionar com a natureza, agora passa a ser o principal fator que o distancia dela. Por isso a grande necessidade das horas de descanso. Os trabalhadores conquistaram ao longo da história diversos direitos trabalhistas, com vista em tornar suas horas de trabalho mais produtivas e aproveitar melhor suas horas de lazer.
O sol que pauta o homem pós-industrial é o relógio, onde cria unidades de tempo cada vez menores. Dividiu-se o dia em 24 horas (que condizem com a posição do sol para cada país, onde origina-se os fuso-horários), cada uma com 60 minutos, divididos, por sua vez, em 60 segundos cada. Cada homem forma seu dia agora diante a sua realidade de trabalho, se acorda as três da manhã para trabalhar e volta as duas da tarde, ou sai as três da tarde e volta as duas da manhã.
O lazer do homem pós-industrial não tardou a virar mercadoria. Dividi-se o tempo livre, para que possa ser útil também, e cada vez mais ele é ocupado com produtos midiáticos, que podem ser consumidos a qualquer momento. O tempo natural já não influi em muitas coisas, pode-se trabalhar ou se divertir a qualquer hora do dia, independente de chuva, sol ou não, frio e noite, com adventos com a internet. Vive-se dizendo por ai que não se tem tempo pra nada, e essa é uma das máximas vigentes da sociedade contemporânea. Se reclama da falta de falta de tempo, mas as horas livres são pautadas por programas de televisão, cinemas e bares. Cada vez mais o homem moderno se isola do outro, através de mediações como celulares e computadores, em vez de encontra-lo pessoalmente. Esse enfraquecimento das relações interpessoais vem da necessidade do homem de acompanhar a evolução de novos mídias, que evoluem com rapidez extraordinária: mal se acaba de comprar o computador mais avançado e o tempo de transporta-lo até a sua casa já foi o suficiente para que outro computador ainda mais moderno fosse lançado.

Saturday, November 25, 2006

A chuva nunca para de cantar.




Madrugada de dia cinza, dia bonito. Cheio de paixões novas vou pra casa pelo caminho lavado que a chuva me presenteia, pensava: se ela se fizesse perto, as cores que carrego seriam mais nítidas. De mansinho ficou doce, disse sem medo o que pensava e acatou tantas idéias com sorriso. Meninagem de moleca sabe? Dividir naturalemente as angústias e alegrias tanto e conhece-la tão pouco. A chuva corre fria e, me permitam vocês dizer, dela sinto falta.

Sunday, November 19, 2006

Albergados.

Foto: Sebastião Salgado

- Qual o nome do senhor?
- Cláudio Tavares.
- Quantos anos?
- 52.
- Grau de escolaridade?
- Segundo Grau completo. (esboça um tímido e orgulhoso sorriso)
- Em caso de emergência, tem pra quem ligar?
- Sim. Ligue pra um amigo. 33614563.
- Já que o senhor já sabe as regras, vou leva-lo a sua cama.
- Obrigado, sei sim. "Não causar problemas". A vida já se encarrega disso.

Feito o cadastro, foi levado ao dormitório. A responsável pelo Albergue Espaço Luz encaminha-o primeiro ao quarto 24, mas a lotação das 5 beliches do cômodo leva-os a subir ao andar superior, onde enfim encontra um leito. Acomoda com carinho a mala com poucas roupas ao lado da cama que será sua essa noite, já o fora de tantos outros, e desce a sala de TV. Cláudio tem família em Franca, boa articulação e vasto vocabulário, mas incomoda-o falar do passado, "traz lembranças dolorosas". Bem vestido e discreto, o senhor negro com fundas marcas de idade no rosto acomoda-se na cadeira de plástico branco e passa a integrar a sala onde tantos outros homens já estiveram. "Da tristeza ver gente como ele aqui", diz uma funcionária.
Pessoas como Cláudio são raras no Espaço Luz., apesar do desgastado prédio marrom de cinco andares em frente a Praça Princesa Isabel ter o costume de receber migrantes sem estrutura na cidade. Mas a maioria das 100 vagas, divididas em 10 cômodos que outrora foram apartamentos, é ocupada por homens em situação de rua. Em rostos amargos sem sonhos, a angústia de não poder chamar um leito de "meu". Um cheiro triste envolve o ar, e o fluxo de pessoas aumenta assim que o sol põe-se a cair. O Espaço Luz, assim como outros 8 albergues, funciona apenas no período noturno, das 16 às 8 horas. Dispõe de aulas de alfabetização, jogos de dominó, refeitório (onde a janta sai pontualmente as 18 horas todos os dias), lavanderia e bagageiro. Há ainda palestras e o incentivo a rodas de conversas. Tem vagas destinadas apenas à homens, visto que correspondem a mais de um terço da população de rua.
O que leva as pessoas a procurar um albergue da prefeitura é tão difuso quanto o perfil dos albergados. Migrantes como Cláudio estão ali de passagem, e, apesar de ser a meta de todos, muitos ficarão ali mais tempo do que o desejado. Dario, 32 anos, viveu alguns anos peregrinando por albergues, até adquirir, por meio da venda da revista OCAS, condições de alugar um apartamento. "A primeira vez que dormi num albergue dei graças a deus. Tomei um banho quente, e pude saciar a fome com pão e café, pude dormir em um colchão. Mas o ambiente é pesado". Brigas surgem de simples esbarrões na filma dos refeitórios, por escassez de paciência e nervos já desgastados. "Ao descer de uma beliche, esbarrei meu pé acidentalmente no rosto do que dormia na cama de baixo. Era um traficante de drogas, saído da cadeia a pouco tempo. Fui embora antes do amanhacer, senti que ele ia me matar. Apesar da revista, matam-se pessoas até com uma caneta" conta Dario.
Enquanto a oportunidade não chega, os albergues continuam a única opção de quem tem de dividir seus sono com tantos outros, sem poder concretizar o sonho de um lugar seu. São quase sete horas, e Cláudio deve arrumar agora sua surrada mala enquanto espera o pão e o café quente, quem sabe a única refeição do seu dia.

Monday, November 13, 2006

Hospital.

Pensava que era ilimitada. Isso explicaria a constante lotação dos computadores, presente em todas as tentativas até então de trazer minha irmã pra ver emails enquanto empurro a cadeira de rodas para o habitual passeio cotidiano. Mas a internet do hospital São Camilo tem um (fraco) bloqueio. Ora, não se abre o site direto do hotmail, mas pode-se acessá-lo pelo da msn. Salvo isso e a lanchonete, é um bom hospital. Supre todas as necessidades do tratamento de minha irmã, inclusive um roteiro de passeios. Desde que o corte que fez no pé ao pisar na tesoura de jardineiro aberta no chão, olhando um vizinho cujo tem certo apreço, é essa sua maior forma de descontração (além dos enlatados americanos da TV acabo que consome faminta).
O ponto alto do passeio é a maternidade no sexto andar, um acima do seu. Sabe a quantos dias os 6 bebês estão ali, seus nomes, qual passou pela incubadora e o que chora mais agudo. Sabe também seus nomes, mais isso já se estende a todos os que tem contato no hospital, sempre com o prefixo de "tio" ou "tia". O passeio de todo dia causa, além de faze-la sorrir, um grande alvoroço pelas recepções a quais passamos. Na cadeira de rodas, uma menina com tubos no braço já prontos pra receber remédios, por náuseas ou mesmo os antibióticos/antinflamatórios, é empurrada por rapaz que recebe a alcunha de senhor, quando é indagado por que ele pensa que pode andar com ela pelo hospital. As enfermeiras, de forma sincronizada com nosso andar como um balé aquático, levam os telefones aos ouvidos enquanto nos olham de forma curiosa, talvez reprensora. Isso nos diverte. Me irrita e me fascina o modo como me deixa guiá-la. Me incomoda o fato do que esta bom pra mim estar bom pra ela, talvez por não saber nem o que é bom pra mim, mas o modo doce como o faz me deixa cada dia mais apaixonado.

Trecho do livro imaginário "Marcela, a descoberta."

Tuesday, November 07, 2006

A despedida do Mombojó.


Vestidos coloridos, camisetas da então recém terminada 30º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e camisas listadas nos ajudam a traçar o difuso perfil do sortudo público que assistiu a última apresentação em São Paulo dos jovens pernambucanos do Mombojó esse ano (salvo, assim espero, um engano de Chiquinho, tecladista e também responsável pelos samplers da banda). Fechando o ciclo de apresentações no sudeste, que conta com a excelente mas curta participação no Tim Festival, a banda subiu ao palco da chopperia do Sesc Pompéia (onde já havia tocado na sexta), no último sábado, dia 4.
Pontualmente as 21 horas, a bossa Merda abriu sorrisos e fechou olhos, enquanto a menina balança seu vestido florido. O rapaz com camiseta da mostra permaneceu apoiado na pilastra, mas balbuciava a letra da música com afinco, enquanto o de camisa listada esboçava alguns passos de samba. "Tá todo mundo dançando eu também quero dançar" dizia a letra de A Missa, trilha de ombros que se moviam com certa delicadeza na cadência da música. Depois de Realismo Convincente, Tempo de Carne e Osso e Pára-quedas, já eram muitos os vestidos que dançavam quando Swinga fez o vocalista Felipe S. convidar pra se juntar a ele algumas pessoas a swingarem, como ele mesmo disse. Desde o começo, Felipe dominava cada espaço do palco, e o dividiu sem problema com os que lá subiram e dançaram, felizes. O repertório, misto dos dois cds da banda, contou ainda com Saborosa, Video-Game, O mais vendido, Adelaide, Homem Espuma e terminou com Deixe-se acreditar, a mais aclamada do show. A camiseta da mostra ainda pulava, e o bis trouxe Faaca e Fatalmente. Listas e golas, vestidos e o rosto vermelho do festival de cinema aplaudiram, e saíram amargurados por ter de esperar até o ano que vem por um bis.

Saramago.

Friday, November 03, 2006

Até onde vemos quando olhamos?



A diferença entre o azul do mar, o amarelo do sol e o intenso brilho presente no fundo dos olhos da pequena menina que assiste as patifarias de um palhaço se torna grande e perceptível, desde que se possua em perfeitas condições um dos mais intrigantes sentidos humanos, a visão. Mas o fato do homem enxergar o que o cerca não tem grande valia se ele não conseguir ver também o invisível. Ao olhar a menina e só ver ali seus fixos olhos castanhos a se entreter com o palhaço enquanto balança o vestido utilizando apenas uma das mãos, e deixar de enxergar seu fascínio ao admirá-lo, deixar passar os sonhos que começam a surgir ali e a felicidade escondida atrás do tímido sorriso é um grande desperdício do sentido. Por mais que para muitos o tema possa parecer apenas um defasado romantismo, a questão é crucial para primeiros anos desse novo milênio, levando em conta a realidade em que nos encontramos: estamos todos cegos. Não no conceito de cegueira biológica, que consiste na ausência parcial ou total da visão, mas cegos por abundância de informações visuais (já que as imagens passaram a vender, e não a acrescentar idéias) veiculadas com tamanha rapidez que não conseguimos absorver, e tornamos nossos olhares superficiais. "Quem é que não enxerga aqui, será eu ou você que não percebe?", cantam os brasilienses da banda Móveis Coloniais de Acaju, ao descrever o diálogo de um cego questionando um rapaz cuja visão não apresenta lesões.
Essa idéia está presente também no documentário brasileiro Janela da Alma, premiado na Mostra BR de Cinema de São Paulo e em outros festivais pelo país, onde os diretores João Jardim e Walter Carvalho constróem um panorama sobre o assunto, com entrevistas semelhantes, mas com visões construídas a partir de realidades visuais diferentes. Contam com 19 nomes (obtidos em uma triagem de 50), como o músico Hermeto Pascoal e o fotógrafo franco-esloveno Eugen Bacar, cada qual ressaltando suas mediações de experiências por seus defeitos visuais e como desenvolvem artifícios que muitas vezes suprem a falta da visão. As entrevistas, e mesmo as imagens que as costuram, contam com a genialidade dos diretores ao utilizar uma linguagem visual com grande variação (ora desfocadas, ora perto demais), e nos ajudar a compreender as dificuldades que a falta total ou parcial da visão nos impõe. Na melhor participação do documentário, Bacar diz que apaixonava-se pelas paixões de seus amigos, sem ao menos vê-las, e aprender a ver por si mesmo foi difícil, mas crucial pra sua vida. O fenômeno da desvinculação do verbo da imagem, onde elas já vem prontas, e não mais precisam da imaginação para serem formadas dialoga com o conceito da cegueira que nos atinge hoje.
Segundo José Saramago, escritor português vencedor do Prêmio Nobel de Literatura e autor do livro Ensaio sobre a cegueira que também participa do documentário de Jardim e Carvalho, estamos mais do que nunca vivenciando a Caverna de Platão, mito onde os homens estariam presos e só enxergariam sombras, mas as tomariam como realidade. No livro, uma súbita cegueira branca sem lesões orgânicas atinge a uma sociedade inteira, excluindo-se apenas a mulher de um oftalmologista. Talvez ser a única a demonstrar um certo altruísmo fez com que Saramago poupa-se a mulher do médico da cegueira leitosa, que estimula os homens a repensar os vínculos humanos mais primitivos. Saramago omite o tempo e o lugar, e reduz os personagens a adjetivos como "rapariga" e "primeiro cego", refletindo através desse tom impessoal uma sociedade doente e fútil, onde as relações humanas cada vez mais se enfraquecem em prol das individualidades, do olhar já condicionado sobre as coisas. Com uma narrativa que foge as regras convencionais de pontuação da língua portuguesa, propõe uma outra forma de se "enxergar" o texto, e requisita a total atenção sobre ele. Dialogando com o depoimento do cineasta Wim Wenders em Janelas, busca assim que reaprendamos a olhar as coisas com mais atenção, a ver menos, mas com maior intensidade.
Essa cegueira, que como agravante possui uma sobrecarga de mídias recheadas de imagens prontas a serem consumidas sem muita reflexão, tem cura, basta ter a consciência dela. Ainda está em tempo de procurarmos em sorrisos tímidos diante aos palhaços felicidades escondidas.
Já que o blogger.com não quer que eu coloque fotos no meu blog, isso considerando o fato de confirmar o upload e elas não aparecerem, deixo aqui um singelo protesto.
(Aqui, caso isso funcionasse, viria uma foto do imaginário singelo protesto. E no começo do post, José Saramago segurando uma bolinha no olho)

Tuesday, August 22, 2006

Enfim Strung Out.


Com as primeiras datas de shows adiadas por problemas com as passagens da empresa aérea Varig, muitos fãs pensaram que não veriam a banda Strung Out subir pela primeira vez aos palcos brasileiros, depois de 14 anos de estrada. As datas da turnê sul-americana foram remarcadas, e o que seriam dois shows em São Paulo acabou em um só, ainda no Hangar 110, no dia 18 de agosto.A abertura ficou a cargo das bandas Rancore e Ventura S/A, ambas de São Paulo. A primeira conseguiu empolgar o até então reduzido público, que sabia de cor suas músicas. A segunda, ex-Fuleragem, teve de conviver com a ansiedade pelo Strung Out, e nem a notícia de que fariam a abertura do show do NOFX acalmou o público.Quando as cortinas vermelhas abriram pela terceira vez, e a voz de Jason Cruz entoou os primeiros versos de “Ultimate Devotion”, as rodas já não continham a euforia e não tardou até o primeiro de uma interminável seqüência de moshes acontecer.Em seguida “Scarecrow”, “Mind Of My Own”, “Scarlet”, “Everyday” e “Velvet Alley” mostravam o porquê da banda ser uma das melhores de hardcore do mundo. Junto com Jason, Rob Ramos e Jake Kiley, nas guitarras, Jordan Burns na bateria (ele também fez parte da formação original do Pulley) e Chris Aiken no baixo mostravam-se totalmente em casa, e não cansavam de molhar o público com água.Mais tarde ainda viriam “Firecracker”, “Her Name In Blood”, “Asking For The World”, e o bis encerrado com “Razor Sex”, como clamavam cartazes de alguns já cansados fãs.Depois do show, os membros da banda fizeram questão de cumprimentar eagradecer ao público, e ali ficaram um bom tempo com quem ao menos arranhassealgumas palavras em inglês.Fica aos fãs brasileiros certeza da simplicidade e humildade dos caras, e a necessidade de um breve retorno.

Matéria originalmente postada em:

http://www.dynamite.com.br/portal/lernews.cfm?cd_noticia=17298

Thursday, June 22, 2006

Merda.


O que muda aos 20 anos? Nada. Você só passa a afundar cada vez mais.

Sábado tem Móveis Coloniais de Acaju e Rock Rocket no Outs.

Thursday, May 25, 2006

Bombom Vermelho


Três disparos certos. O seqüestrador estaria morto, mas era um inocente. Não podia ser! Nãããããããooooooooooooo...
Acordo assustado mais um dia mal dormido. Suando frio, logo me desfaço da fétida coberta e busco um cigarro na cômoda de madeira velha. Passo os olhos pelo despertador e vejo que iria ter de acordar em questão de minutos mesmo. Quatro e dez. Nem o sol faz menção de nascer a essa hora. E o fardo, que agora insiste em me perseguir em sonhos. No calendário da parede mofada, dia dezesseis de setembro de 2005. Há dez anos atirava em um inocente. Há dez anos.
Visto a cama com a coberta, coloco o surrado terno e empunho a arma. A mesma calibre 38 de sempre. Tomo um copo de café frio e saio do apartamento, trombando com a escória de drogados e as prostitutas vizinhas que ainda não largaram o expediente. Uma delas pisca, mas sabe que em vão. No carro, indo para delegacia, acendo mais um cigarro. Ligo o rádio, e a notícia do seqüestro do filho de rico e podre empresário deixa meu dia ainda pior.
Chego rápido na delegacia, não há vivalma na cidade a essa hora. Viro mais um copo de café, agora quente. Dá pra ver o pânico instaurado nesses investigadorezinhos de gabinete.
O garoto foi seqüestrado quando voltava para casa de um cinema. O pai, cuja fama de sujo o precede, recebera o seguinte bilhete:
SEU FILHO está em nosso PODER
SE QUISER O MENINO DE VOLTA,
SIGA AS INSTRUÇÕES:
Ponha 500 MIL DÓLARES
Numa MALA PRETA e deixe atrás
Da banca de JORNAL
DA ESTAÇÃO de trem às 10:50.
Pegue o TREM DAS 11:00
Se ficar alguém vigiando a mala
O menino MORRE!
Bilhete amador. Por ele que os idiotas tremeram? O maior caso dos últimos dez anos chega a delegacia e nem sequer serei relacionado. Ou não. Quando chego ao evitado gabinete, o meu, está em cima da mesa o dossiê com o caso.
Pego o carro e vou até a estação da Luz, arrancar informações do jornaleiro. A banca está fechada, e um degrau me serve de espera enquanto acendo outro cigarro. Por volta de meia hora, chega uma mulher gorda, já sentindo o peso da idade. Apesar do rosto apático e marcado, não deve ter mais de 40 anos. Chega comendo uma caixa de bombons com embalagem vermelha, e lambendo os dedos pergunta o que eu tinha na minha cabeça estúpida pra sentar no degrau da banca dela. Odeio esse tipo de abordagem, me irrita.
Esfregando meu distintivo em sua face, digo que vamos conversar.
Quando o relógio já gritava 9 horas e eu acabava de apagar meu enésimo cigarro, consegui poucas informações da ignorante dona de banca de jornal. Volto pra delegacia, onde o pai do menino esbraveja toda sua insatisfação com a polícia.
Gordo e careca, faz questão de nos dizer o quanto é importante na sociedade e as consequências de algo acontecer ao filho prodígio dele, orfão de mãe. De fato, pelo dossiê, o menino é um gênio. Melhores notas do internato europeu onde fica trancafiado a semana, só volta para casa no sábado. Presidente do grupo de estudos em latim da escola, fundador da atlética de tênis, é, condecorações é o que não faltam.
São dez e meia, estou plantado no ponto de taxi em frente a banca lendo o jornal e fumando mais um cigarro. Percorro os olhos pelas notícias tolas, sem me desviar da banca de jornal. As dez e cinqüenta, o pesado pai do garoto deixa a mala atrás da banca e pega o trem das onze horas. Papéis vermelhos não param de voar da banca. Nunca vi tanto fascínio por esses bombons vagabundos. Muitos deles imagino eu devem vir já esbranquiçados, velhos e podres. E ela os come como se deliciosos, como se... espera! Cadê a mala?
Um vulto preto corre com a mala na direção do treme-treme, um prédio antigo e acabado, tomado por vagabundos, viciados e prostitutas. Entra no prédio apressado, e não me vê chegar. Imagino que o menino deve estar ali. Subo as escadas sem iluminação, trombando em pessoas cujas vidas não devem significar nada. Chego a uma sala com feixes fracos de luz, que passam através das tábuas de madeira pregadas nas janelas. O vulto está de costas, rindo.
Aponto a arma pra ele já com ódio, e mando se virar. Ele, ainda rindo, diz que eu deveria ter prestado mais atenção ao bilhete. Se alguém o seguisse, o menino morreria. Rápido, coloca a mão no bolso e fazendo menção de sacar algo, é alvejado por três tiros no peito e cai. Na certa, o seqüestrador estaria morto.
Me aproximo dele, e com a voz no tom de ultimo suspiro, ele ri. Acendo a lanterna e vejo que é o menino, filho do empresário. O desgraçado sádico fingiu um seqüestro de propósito, queira atenção ou dinheiro. Dou mais um tiro, dessa vez em sua testa. Matei um inocente mais uma vez. Com cautela, engatilho o velho 38 e coloco o cano encostado no céu da minha boca. Esse fardo estava carregado demais. Aperto o gatilho, e, com os miolos espalhados por todo o lugar, caio ao lado do que o garoto sacaria do bolso. Um bombom vermelho.

Thursday, April 27, 2006

Esperando Godot.

Criatividade, imaginação e inspiração reprimidas por crises alérgicas (nem pra fugir do habitual formato texto+imagem+texto+musica legal). Enquanto isso...



Três vivas a psicodelia.

Belle & Sebastian - Eletronic Renaissance

Monday, April 24, 2006

Encoste a porta.

Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.


Ou... não.

Sufjan Stevens - Decatur.

Sunday, April 23, 2006

Vazio.

Não existiria totalidade não fosse a eterna busca.


Não haveria superficialidade não fosse a constante fuga.


Miles Davis - Filles de Kilimanjaro (Girls of Kilimanjaro)

Tuesday, April 18, 2006

Tudo passa.

Percebi que tudo passa.As coisas, as pessoas, mesmo a saudade. Mas se tudo passa, estamos fadados a solidão?







Branford Marsalis Quartet - Gloomy Sunday

Sunday, April 16, 2006

Cordel da Metrópole

Definição rápida e resumida de cordel: poesia narrativa popular impressa.


Cordel da metrópole? poesia narrativa popular on-line.